quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

As 95 Teses de Lutero



Logo após a conclusão das 95 teses no sec XVI, Lutero pregou-as pessoalmente na porta da Catedral de Wittemberg. Fiéis da região passaram a ler o que havia nos papéis afixados. Em seguida, os escritos de Martin foram publicados em grande escala, atingindo assim, um maior número de pessoas, inclusive o Papa obteve rápido acesso deste material. Essas teses estavam compostas de algumas dimensões conceituais, conforme vemos abaixo:

" Teses aceitáveis ao Catolicismo
" Teses demagógicas
" Teses que supõem o conceito luterano de justificação
" Teses que procuram reconhecer o magistério do Papa
" Teses que denotam termos sarcásticos




Movido pelo amor e pelo empenho em prol do esclarecimento da verdade discutir-se-á em Wittemberg, sob a presidência do Ver. Padre Martinho Lutero, o que segue. Aqueles que não puderem estar presentes para tratarem do assunto verbalmente connosco, poderão fazê-lo por escrito. Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém !.

1. Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: "Arrependei-vos" etc., certamente quer que toda a vida dos seus crentes na terra seja contínuo arrependimento.

2. E esta expressão não pode e não deve ser interpretada como referindo-se ao sacramento da penitência, isto é, à confissão e satisfação, a cargo do ofício dos sacerdotes.

3. Todavia não quer que apenas se entenda o arrependimento interno; o arrependimento interno nem mesmo é arrependimento quando não produz toda sorte de mortificações da carne.

4. Assim sendo, o arrependimento e o pesar, isto é, a verdadeira penitência, perdura enquanto o homem se desagradar de si mesmo, a saber, até a entrada desta para a vida eterna.

5. O papa não quer e não pode dispensar outras penas, além das que impôs ao seu alvitre ou em acordo com os cânones, que são estatutos papais.

6. O papa não pode perdoar dívida senão declarar e confirmar aquilo que já foi perdoado por Deus; ou então faz nos casos que lhe foram reservados. Nestes casos, se desprezados, a dívida deixaria de ser em absoluto anulada ou perdoada.

7. Deus a ninguém perdoa a dívida sem ao mesmo tempo o subordine, em sincera humildade, ao sacerdote, seu vigário.

8. Canones poenitendiales, que são as ordenanças de prescrição da maneira em que se deve confessar e expiar, apenas são impostas aos vivos, e, de acordo com as mesmas ordenanças, não dizem respeito aos moribundos.

9. Eis porque o Espírito Santo nos faz bem mediante o papa, excluindo este de todos os seus decretos ou direitos o artigo da morte e da necessidade suprema.

10. Procedem desajuizadamente e mal os sacerdotes que reservam e impõem os moribundos poenitentias canonicas ou penitências para o purgatório afim de ali serem cumpridas.

11. Este joio, que é o de se transformar a penitência e satisfação, previstas pelas cânones ou estatutos, em penitência ou apenas do purgatório, foi semeado quando os bispos se achavam dormindo.

12. Outrora canonicae poenae, ou sejam penitência e satisfação por pecados cometidos eram impostos, não depois, mas antes da absolvição, com a finalidades de provar a sinceridade do arrependimento e do pesar.

13. Os moribundos tudo satisfazem com a sua morte e estão mortos para o direito canónico, sendo, portanto, dispensados, com justiça de sua imposição.

14. Piedade ou amor imperfeitos da parte daquele que se acha às portas da morte necessariamente resultam em grande temor; logo, quanto menor o amor, tanto maior o temor.

15. Este temor e espanto em si tão só, sem falar de outras cousas, bastam para causar o tormento e horror do purgatório, pois que se avizinham da angústia do desespero.

16. Inferno, purgatório e céu parecem ser tão diferentes quanto o são um do outro o desespero completo, incompleto ou quase desespero e certeza.

17. Parece que assim como no purgatório diminuem a angústia e o espanto das almas, nelas também deve crescer e aumentar o amor.

18. Bem assim parece não ter sido provado, nem por boas razões e nem pela Escritura, que as almas no purgatório se encontram for a da possibilidade do mérito ou do crescimento no amor.

19. Ainda não parece ter sido provado que todas as almas do purgatório tenham certeza de sua salvação e não receiem por ela, não obstante nós teremos absoluta certeza disto.

20. Por isso o papa não quer dizer e nem compreende com as palavras "perdão plenário de todas as penas" que todo o tormento é perdoado, mas apenas as penas por ele impostas.

21. Eis porque erram os apregoadores de indulgências ao afirmarem ser o homem perdoado de todas as penas e salvo mediante a indulgência do papa.

22. Com efeito, o papa nenhuma pena dispensa às almas no purgatório das que segundo os cânones da Igreja deviam ter expiado e pago na presente vida.

23. Verdade é que se houver qualquer perdão plenário das penas, este apenas será dado aos mais perfeitos, que são muito poucos.

24. Assim sendo, a minoria do povo é ludibriada com as pomposas promessas do indistinto perdão, impressionando-se o homem singelo com as penas pagas.

25. Exactamente o mesmo poder geral, que o papa tem sobre o purgatório, qualquer bispo e cura de almas tem no seu bispado e na sua paróquia, quer de modo especial e quer para com os seus em particular.

26. O papa faz muito bem em não conceder o perdão em virtude do poder das chaves ( ao qual não possue ), mas pela ajuda ou em forma de intercessão.

27. Pregam futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao cair na caixa a alma se vai do purgatório.

28. Certo é que no momento em que a moeda soa na caixa vêm o lucro e o amor ao dinheiro, cresce e aumenta; a ajuda porém, ou a intercessão da Igreja tão só correspondem à vontade e ao agrado de Deus.

29. E quem sabe, se todas as almas do purgatório querem ser libertadas, quando há quem diga o que suceder com Santo Severino e Pascoal.

30. Ninguém tem certeza da suficiência do seu arrependimento e pesar verdadeiros; muitos menos certeza pode ter de haver alcançado pleno perdão dos seus pecados.

31. Tão raro como existe alguém que possui arrependimento e pesar verdadeiros, tão raro também é aquele que alcança indulgência, sendo bem poucos os que se encontram.

32. Irão para o diabo juntamente com os seus mestres aqueles que julgam obter certeza de sua salvação mediante breves de indulgência.

33. Há que acautelar-se muito e ter cuidado daqueles que dizem: A indulgência do papa é a mais sublime e mais preciosa graça ou dádiva de Deus, pela qual o homem é reconciliado com Deus.

34. Tanto assim, que a graça da indulgência apenas se refere à pena satisfatória estipulada por homens.

35. Ensinam de maneira ímpia quantos alegam que aqueles que querem livrar almas do purgatório ou adquirir breves de confissão não necessitam de arrependimento e pesar.

36. Todo e qualquer cristão que se arrepende verdadeiramente dos seus pecados, sente pesar por ter pecado, tem pleno perdão da pena e da dívida, perdão esse que lhe pertence mesmo sem breve de indulgência.

37. Todo e qualquer cristão verdadeiro, vivo ou morto, é participante de todos os bens de Cristo e da Igreja, dádiva de Deus, mesmo sem breve de indulgência.

38. Entretanto se não deve desprezar o perdão e a distribuição por parte do papa. Pois, conforme declarei, o seu perdão constitui uma declaração do perdão divino.

39. É extremamente difícil, mesmo para os mais doutos teólogos, exaltar diante do povo ao mesmo tempo a grande riqueza da indulgência e ao contrário o verdadeiro arrependimento e pezar.

40. O verdadeiro arrependimento e pesar buscam e amam o castigo; mas a profusão da indulgência livra das penas e faz com que se as aborreça, pelo menos quando há oportunidade para isso.

41. É necessário pregar cautelosamente sobre a indulgência papal para que o homem singelo não julgue erroneamente ser a indulgência preferível às demais obras de caridade ou melhor do que elas.

42. Deve-se ensinar aos cristão, não ter pensamento e opinião do papa que a aquisição de indulgência de alguma maneira possa ser comparada com qualquer obra de caridade.

43. Deve-se ensinar aos cristãos proceder melhor quem dá aos pobres ou empresta aos necessitados do que os que compram indulgências.

44. É que pela obra de caridade cresce o amor ao próximo e o homem torna-se mais piedoso; pelas indulgências porém, não se torna melhor senão mais segura e livre da pena.

45. Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidade e a despeito disto gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgências do papa, mas provoca a ira de Deus.

46. Deve-se ensinar aos cristão que, se não tiverem fartura, fiquem com o necessário para a casa e de maneira nenhuma o esbanjem com indulgências.

47. Deve-se ensinar aos cristãos, ser a compra de indulgências livre e não ordenada.

48. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa precisa conceder mais indulgências, mais necessita de uma oração fervorosa de que de dinheiro.

49. Deve-se ensinar aos cristãos, serem muito boas indulgências do papa enquanto o homem não confiar nelas; mas muito prejudiciais quando, em consequências delas, se perde o temor de Deus.

50. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa tivesse conhecimento da traficância dos apregoadores de indulgências, preferiria ver a catedral de São Pedro ser reduzida a cinzas a ser edificada com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

51. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa, por dever seus, preferiria distribuir o seu dinheiro aos que em geral são despojados do dinheiro pelos apregoadores de indulgência, vendendo, se necessário fosse, a própria catedral de São Pedro..4

52. Comete-se injustiça contra a Palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra tanto ou mais tempo à indulgência do que à pregação da Palavra do Senhor.

53. São inimigos de Cristo e do papa quantos por causa da prédica de indulgências proíbem a Palavra de Deus nas demais igrejas.

54. Esperar ser salvo mediante breves de indulgências é vaidade e mentira, mesmo se o comissário de indulgências, mesmo se o próprio papa oferecesse sua alma como garantia.

55. A intenção do papa não pode ser outra do que celebrar a indulgência, que é a causa menor, com um sino, uma pompa e uma cerimónia, enquanto o Evangelho, que é essencial, importa ser anunciado mediante cem sinos, centenas de pompas e solenidades.

56. Os tesouros da Igreja, dos quais o papa tira e distribui as indulgências, não são bastante mencionadas e nem suficientemente conhecidos na Igreja de Cristo.

57. Que não são bens temporais, é evidente, porquanto muitos pregadores a este não distribuem com facilidade, antes os ajuntam.

58. Tão pouco são os merecimentos de Cristo e dos santos, porquanto estes sempre são eficientes e, independentemente do papa, operam salvação do homem interior e a cruz, a morte e o inferno para o homem exterior.

59. São Lourenço aos pobres chamava tesouros da Igreja, mas no sentido em que a palavra era usada na sua época.

60. Afirmamos com boa razão, sem temeridade ou leviandade, que este tesouros são as chaves da Igreja, a ela dado pelo merecimento de Cristo.

61. Evidente é que para o perdão de penas e para a absolvição em determinados casos o poder do papa por si só basta.

62. O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

63. Este tesouro, porém, é muito desprezado e odiado, porquanto faz com que os últimos sejam os primeiros

64. Enquanto isso o tesouro das indulgências é sabidamente o mais apreciado, porquanto faz com que os últimos sejam os primeiros.

65. Por essa razão os tesouros evangélicos outrora foram as redes com que se apanhavam os ricos e abastados.

66. Os tesouros das indulgências, porém, são as redes com que hoje se apanham as riquezas dos homens.

67. As indulgências apregoadas pelos seus vendedores com ao mais sublimes graça decerto assim são considerados porque lhes trazem grandes proventos.

68. Nem por isso semelhante indulgência não deixa de ser a mais íntima graça comparada com a graça de Deus e a piedade da cruz.

69. Os bispos e sacerdotes são obrigados a receber os comissários das indulgências apostólicas com toda a reverência.

70. Entretanto têm muito maior dever de conservar abertos olhos e ouvidos, para que estes comissários, em vez de cumprirem as ordens recebidas do papa, não preguem os seus próprios sonhos.

71. Aquele, porém, que se insurgir contra as palavras insolentes e arrogantes dos apregoadores de indulgências, seja abençoado.

72. Quem se levanta a sua voz contra a verdade das indulgências papais é excomungado e maldito.

73. Da mesma maneira em que o papa usa de justiça ao fulminar com a excomunhão aos que em prejuízo do comércio de indulgências procedem astuciosamente.

74. Muito mais deseja atingir com o desfavor e a excomunhão àqueles que, sob o pretexto de indulgência, prejudiquem a santa caridade e a verdade pela sua maneira de agir.

75. Considerar as indulgências do papa tão poderosa, a ponto de poderem absolver alguém dos pecados, mesmo que ( cousa impossível ) tivesse desonrado a mãe de Deus, significa ser demente.

76. Bem ao contrário, afirmamos que a indulgência do papa nem mesmo o menor pecado venial pode anular no que diz respeito à culpa que constitui.

77. Dizer que mesmo São Pedro, se agora fosse papa, não poderia dispensar maior indulgência, significa blasfemar São Pedro e o papa.

78. Em contrário, dizemos que o atual papa, e todos os que o sucederem, é detentor de muito maior indulgência, isto é, o Evangelho, as virtudes, o dom de curar, etc. , de acordo com o que diz I Coríntios 12.

79. Afirmar ter a cruz de indulgências adornada com as armas do papa e colocada na igreja tanto valor como a própria cruz de Cristo, é blasfémia.

80. Os bispos, padres e teólogos que consentem em semelhante linguagem diante do povo, terão de prestar contas deste procedimento.

81. Semelhante pregação, a enaltecer atrevida e insolentemente a indulgência, faz com que mesmo a homens doutos é difícil proteger a devida reverência ao papa contra a maledicência e as fortes objeções dos leigos.

82. Eis um exemplo: Por que o papa não tira duma vez todas as almas do purgatório, movido por santíssima caridade e em face da mais premente necessidade das almas, que seria justíssimo motivo para tanto, quando em troca de vil dinheiro para construção da catedral de São Pedro, livra um sem número de almas, logo por motivo bastante insignificante?

83. Outrossim: Por que continuam as exéquias e missas de ano em sufrágio das almas dos defuntos e não se devolve o dinheiro recebido para o mesmo fim ou não se permite os doadores busquem de novo os benefícios ou prebendas oferecidos em favor dos mortos, visto ser injusto continuar a rezar pelos já resgatados?

84. Ainda: Que nova piedade de Deus e do papa é esta, que permite a um ímpio e inimigo resgatar uma alma piedosa e agradável a Deus por amor ao dinheiro e não resgatar esta mesma alma piedosa e querida de sua grande necessidade por livre amor e sem paga ?

85. Ainda: Por que os cânones de penitência, que de fato, faz muito caducaram e morreram pelo desuso, tornam a ser resgatados mediante dinheiro em forma de indulgências como se continuassem bem vivos e em vigor ?

86. Ainda: Por que o papa, cuja fortuna hoje é a mais principesca do que a de qualquer Credo, não prefere edificar a catedral de São Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer com o dinheiro de fiéis pobres ?

87. Ainda: Que ou que parte concede o papa do dinheiro proveniente de indulgências aos que pela penitência completa assiste direito à indulgência plenária ?

88. Afinal: que maior bem poderia receber a Igreja, se o papa, como já o fez cem vezes ao dia, concedesse a cada fiel semelhante dispensa e participação da indulgência a título gratuito.

89. Visto o papa visar mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que revoga os breves de indulgência outrora por ele concedidos, aos quais atribuía as mesmas virtudes ?

90. Refutar estes argumentos sagazes dos leigos pelo uso da força e não mediante argumentos da lógica, significa entregar a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.

91. Se a indulgência fosse apregoada segundo o espírito e sentido do papa, aqueles receios seriam facilmente desfeitos, nem mesmo teriam surgido.

92. Fora, pois, com todos estes profetas que dizem ao povo de Cristo: Paz! Paz! e não há paz.

93. Abençoados seja, porém, todos os profetas que dizem à grei de Cristo: Cruz! Cruz! e não há cruz.

94. Admoestem-se os cristãos a que se empenham em seguir sua Cabeça Cristo através do padecimento, morte e inferno.

95. E assim esperem mais entrar no reino dos céus através de muitas tribulações do que facilitados diante de consolações infundadas.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Sobre a ressurreição dos mortos

Atenágoras de Atenas-séc.II

O tratado se divide em duas grandes partes: os caps. 1-11 formam a primeira parte e respondem às objeções tradicionais a respeito da ressurreição dos corpos como impossível de se realizar e indigna de Deus; os caps. 12-25 formam a segunda parte e estabelecem a conveniência e a necessidade da ressurreição. O argumento fundamental, entre outros, é que sendo o homem composto de corpo e alma, as duas partes devem ser recompensadas ou punidas juntas. Quatro argumentos vêm reforçar esta fundamentação: nos caps. 12-13, o argumento é o destino do homem criado para viver eternamente. Ora, se não houver ressurreição, não haverá vida eterna. Nos caps. 14-17, usa-se como argumento a natureza humana que compreende dois elementos unidos, a alma e o corpo. Nos caps. 18-23, trata-se do julgamento que deve ser aplicado tanto ao corpo quanto à alma, porque tanto um como o outro deve ser premiado ou castigado. Seria injusto, por exemplo, não premiar o corpo pelas obras boas que o homem realizou com sua colaboração. Finalmente, nos caps. 24-25, Atenágoras emprega o argumento do fim último que não é atingido nesta existência. O homem foi destinado à felicidade eterna, mas esta não é alcançada nesta vida. Logo, tem que haver ressurreição para que esta felicidade possa acontecer. Como se vê, Atenágoras tenta demonstrar a possibilidade e a conveniência da ressurreição fundamentalmente ao nível filosófico sem recorrer às Escrituras e nem mesmo alude à ressurreição de Cristo.

Deve-se observar ainda que a antropologia de Atenágoras é dependente do platonismo. O homem é composto de corpo mortal e alma imortal, embora criada. Na ressurreição, o corpo se conjuga novamente com a alma, que no período que vai entre a morte e a ressurreição, estivera num estado de torpor. A ressurreição reconstrói, portanto, aquela unidade que constitui o verdadeiro homem.


I PARTE: A POSSIBILIDADE DA RESSURREIÇÃO

Dois tipos de raciocínio

1. Em todo dogma ou doutrina que se atenha à verdade nesses assuntos nasce, como rebento, alguma mentira. E nasce não porque, de princípio, saia algo inerente por natureza ou como causa essencial de cada coisa, mas porque é procurado com afinco que honram o germe adúltero que corrompe a verdade. Pode-se comprovar isso primeiramente que há muito tempo especularam sobre esses assuntos e na divergência com seus predecessores ou mesmo com seus contemporâneos, e igualmente atra­vés da própria confusão em que se encontram os assuntos discutidos. Com efeito, é certo que essa laia de pessoas não deixou nenhuma verdade sem calúnia: nem a essência de Deus, nem seu conhecimento e sua operação, nem o seguimento encadeado dessas coisas que nos aponta a doutrina da piedade. Assim, existem alguns que, comple­tamente e de uma vez para sempre, renunciam a encon­trar a verdade sobre esses assuntos; outros a distorcem em vista de suas próprias opiniões; outros, por fim, fazem profissão de dúvida até sobre o evidente. Na minha opinião, aqueles que se preocupam com isso necessitam de duplos raciocínios: uns para defender a verdade, outros a respeito da verdade. Os raciocínios para defender a verda­de se dirigem aos que não crêem ou duvidam; os raciocínios a respeito da verdade para os que têm sentimentos nobres e recebem com benevolência a verdade. Portanto, é preciso que aqueles que desejam examinar estas questões considerem o que lhes seja útil em cada caso e, de acordo com o caso, meçam seus raciocínios e ajustem convenientemente à sua ordem, e não descuidem do conveniente e do lugar que corresponde a cada coisa, acreditando que se deva conservar sempre o mesmo princípio. Com efeito, se se olha para a força demonstrativa e para a ordem natural, os raciocínios a respeito da verdade têm a primazia sobre os raciocínios em defesa da verdade; ao contrário, se olhamos, porém, a utilidade, os raciocínios em defesa da verdade são anteriores aos raciocínios a respeito da verdade. Assim é que o lavrador não pode convenientemente lançar as sementes na terra, se antes não arrancar todo o mato e o que pode prejudicar a boa semente; o médico também não pode aplicar medicamentos de saúde ao enfermo, se não limpa antes o mal interno ou não detém o mal que procura infiltrar-se; assim quem procura ensinar a verdade não poderá, por mais que fale dela, persuadir a ninguém, enquanto uma falsa opinião esteja agarrada à mente dos ouvintes e se oponha aos raciocínios. Nós também, visando justamente à utilidade, por vezes antepomos os raciocínios em defesa da verdade aos raciocínios a respeito da verdade. E para quem considera o que é conveniente, não lhe parecerá inútil que procedamos agora do mesmo modo, neste tratado sobre a ressurreição. De fato, também neste assunto, encontramos alguns que não crêem absolutamente, outros que duvidam e, entre os que aceitam nossos primeiros princípios, existem os que são tão perplexos como os que duvidam abertamente. O mais absurdo é que eles não têm o menor pretexto para fundamentar sua incredulidade na realidade, nem podem encontrar uma única causa racional para não crerem ou duvidarem.

O conhecimento que Deus tem das coisas é garantia da ressurreição

2. Passemos à consideração. Toda incredulidade, se não é gerada temerariamente ou por alguma opinião irreflexiva, mas por forte causa e com verdadeira segurança, então detém a razão conveniente, pois a própria coisa para a qual se nega a fé não parece oferecer nenhuma garantia de verdade. De fato, não crer naquilo que não é inacreditável é próprio de homens que não têm dela julgamento sadio sobre a verdade. Portanto, os que não crêem na ressurreição ou duvidam dela, não devem dar sua opinião sobre ela a partir do que lhes pareça irrefletidamente, nem por aquilo que poderia ser grato às pessoas intemperantes; devem dizer que a origem do homem não depende de nenhuma causa (e isso é fácil de refutar) ou, se atribuem a Deus a causa de todos os seres, devem olhar este dogma como princípio e por ele devem demonstrar que a ressurreição não tem nenhuma garantia de verdade. Conseguirão isso se demonstrarem que Deus não pode ou não quer unir e juntar de novo os corpos mortos e até completamente desfeitos, para constituir os mesmos homens. E se não podem demonstrá-lo, parem com essa incredulidade atéia e não blasfemem contra o que não é lícito blasfemar. Que não dizem a verdade ao falar que Deus não pode ou não quer, ficará claro pelo que vamos dizer.

Sabe-se realmente que algo é impossível para alguém, quando este não sabe o que fazer ou porque não tem força suficiente para fazer bem o que sabe. Com efeito, aquele que não conhece o que se tem que fazer, não pode de jeito nenhum tentar, sequer realizar o que desconhece; aquele que conhece bem o que se tem que fazer, quais os meios e de que modo, mas não tem nenhuma força para isso ou não a tem suficientemente, esse, se é sensato e sabe medir as próprias forças, em princípio não começará a obra; se a começa de modo desconsiderado, não poderá levar o cabo o seu propósito. Pois bem! Não é possível que Deus desconheça, em cada parte e membro, a natureza dos corpos que ressuscitarão, nem que ignore o paradeiro de cada parte desfeita, nem qual parte de elemento recebeu o desfeito e dissolvido em seus afins, por mais difícil que pareça aos homens discernir aquilo que identi­ficou novamente de modo natural com o todo. De fato, quem, antes da própria constituição de cada um, não desconhecia a natureza dos elementos que deveriam exis­tir e dos que deveriam formar os corpos dos homens, nem as partes daqueles que lhe pareceu melhor tomar para a constituição do corpo, é evidente que, depois de completa­mente dissolvido, também não desconhecerá onde foi parar cada uma das partes que tomou para completar o todo. Segundo a ordem dominante das coisas entre nós e o julgamento de cada caso, certamente é superior conhe­cer antecipadamente o que não é; no entanto, para a dignidade e sabedoria de Deus, ambas as coisas são naturais e igualmente fáceis: conhecer antecipadamente o que não é e reconhecer o que se desfez.

Quem criou pode recriar

3. Que o poder de Deus seja suficiente para ressuscitar os corpos, o próprio fato de sua criação o prova. Se Deus fez os corpos dos homens, que não existiam, conforme a primeira constituição e princípios deles, com a mesma facilidade ressuscitará os que, seja como for, se desfize­ram, pois isso é igualmente possível para ele. Este racio­cínio em nada falha pelo fato de que alguns suponham que os primeiros princípios derivam da matéria, ou que os corpos dos homens têm como princípios os elementos ou os espermas. De fato, o mesmo poder usado para dar forma ao que eles consideram matéria informe, adornar com diferentes espécies a que não tem espécie nem adorno, reunir em um só composto as partes dos elementos, dividir na variedade de membros o sêmen que é um e simples, articular o inarticulado, e dar vida ao não viven­te, o mesmo é usado para reunir o dissolvido, levantar o que jaz por terra, vivificar o morto e transformar em incorrupto o corrompido. Corresponde ao mesmo e é obra do mesmo poder e sabedoria distinguir e reunir em suas próprias partes e membros aquele que, despedaçado, foi parar numa multidão de animais de toda espécie, que costumam atacar tais corpos e saciar-se deles, tenham ido pararem um só desses animais ou em muitos, e destes em outros e, dissolvido juntamente com eles, tenha voltado, conforme a natural dissolução, aos primeiros princípios. Parece ser isso o que mais perturba alguns, entre aqueles cuja sabedoria é admirável; não sei porque consideram tão grandes as dificuldades correntes entre o vulgo.

Dificuldades para admitir a ressurreição

4. Com efeito, o vulgo costuma objetar que muitos corpos, mortos miseravelmente em naufrágios e rios, serviram de alimento aos peixes, e muitos que morreram nas guerras, ou em outra causa mais áspera, ou em qualquere acidente das coisas, não receberam as honras da sepultura e ficaram expostos como pasto de numerosas feras. Desse modo, consumidos os corpos e espalhadas suas partes e membros, de que se compunham, entre muitos animais e assimilados, através do alimento, com os corpos daqueles que os comeram, eles dizem primeira­mente que a separação é impossível. A essa dificuldade acrescentam outra ainda maior: se os corpos de animais que se alimentaram de carne humana são, por sua vez, aptos para alimento de homens, passando pelo ventre destes e assimilados aos corpos de quem os comeram, resultará necessariamente que as partes dos homens que serviram de alimento aos animais passarão para os corpos de outros homens, pois os animais que se alimentaram deles os transportam, por sua vez, para aqueles homens que se alimentam deles. A tudo isso, acrescentam as tragédias daqueles que comeram seus próprios filhos em momentos de fome ou em arroubos de loucura, ou dos filhos que, por armadilha dos inimigos, foram alimento de seus próprios pais; formam assim uma cadeia de calami­dades acontecidas entre os gregos e os bárbaros: a famosa mesa de Medéia, os trágicos convites de Tiestes e outras semelhantes. A partir de tudo isso, estabelecem, confor­me pensam, que a ressurreição é impossível, pois os mesmos membros não podem ressuscitar em diferentes corpos; ou não podem ressuscitar os corpos dos primeiros, admitindo que as partes que o compunham passaram para outro; ou, se estas são devolvidas para os primeiros, os outros ficarão defeituosos.

Argumentações para eliminar as objeções

5. Parece-me, porém, que aqueles que assim falam, em primeiro lugar, desconhecem o poder e a sabedoria daquele que criou e governa todo este universo. Ele adapta o natural e conveniente alimento para cada natureza e espécie de animal, não permite que qualquer natureza seja unida a qualquer corpo e assimilada por este; e não lhe seria difícil nem mesmo a separação do unido. Ele consente, porém, que cada coisa criada faça e suporte o que condiz com sua natureza e proíbe o que não condiz; e ele consente ou se opõe a tudo o que quer e para a finalidade que quer. Além disso, parece-me que não levaram em consideração a própria força e natureza de cada um dos que se alimentam ou são alimentados. Caso contrário, ter-se-iam dado conta de que nem tudo que se ingere, cedendo à necessidade exterior, converte-se, sem mais nem menos, em alimento natural para o animal, mas que existem coisas que, apenas tendo chegado às partes dobradas do ventre, naturalmente se corrompem e que, por vômito, secreção ou por outro modo, são expelidas, de modo que por breve tempo toleram a primeira e natural cocção e muito menos a assimilação com o corpo que se quer alimentar. Além disso, tudo o que foi cozido e recebeu a primeira transformação não se incorpora absolutamente às partes alimentadas, porque parte perde sua força nutritiva no próprio ventre, parte na segunda transformação, são segregados na cocção que se realiza no fígado e executam outra função alheia à virtude nutritiva. Mesmo a transformação que se realiza no fígado não passa a ser inteiramente alimento dos homens, mas é segregada para as naturais superfluidades. Por fim, o que sobra se transforma por vezes em outra coisa nas mesmas partes e membros alimentados, conforme o predomínio do que abunda ou sobra e que costuma, de algum modo, corromper ou assimilar em si o que se lhe aproxima.

6. Portanto, como é tão grande a variedade natural em todos os animais e o próprio alimento natural muda para cada espécie animal e para cada corpo alimentado, e o alimento de cada animal, tendo que sofrer tríplice purificação e segregação, é totalmente necessário que ele corrompa naturalmente, elimine ou transforme em outra coisa tudo o que é alheio à nutrição do animal, por não poder ser assimilado, e que a força do corpo alimentício se ajeite e esteja conforme à natureza e força do corpo alimentado pelas segregações naturais e, purificado com os meios de purificação da própria natureza, se transforme em autêntico aumento da substância. Falando conforme a verdade das coisas, somente este se deveria chamar alimento, pois rejeita tudo o que é alheio e daninho à constituição do corpo alimentado e aquele grande peso que provém de ventre cheio e da satisfação do apetite. Ninguém duvidará que este é o alimento que se une ao corpo alimentado, implicando-se e incorporando-se às suas partes e membros; mas o que não é assim e é contrário à natureza, corrompe-se logo ao se encontrar com uma força maior; todavia, se é ele que predomina, corrompe com facilidade o organismo e se transforma em maus humores e qualidades venenosas, como o que não traz nada próprio ou favorável ao corpo alimentado. A prova maior disso reside em que para muitos animais seguem-se dores, perigo ou morte se, impelidos por veemente apetite, ingerem, misturado à comida, algo venenoso e contrário à natureza. Isso pode corromper o animal alimentado, pois o que se alimenta, se alimenta somente com o apropriado e conforme à sua natureza, e se corrompe com o contrário. Ora, se o alimento conforme à natureza se diversifica pela diferença dos animais também diferentes por natureza, e ainda assim nem tudo o que o animal ingere, nem qualquer parte dele, recebe a assimilação com o corpo alimentado, mas somente o purificado por todas as cocções e de fato transformado para a união segundo a qualidade do corpo, e que se adapta finalmente às partes alimentadas, é evidente que nada que seja contra a natureza pode unir-se a corpos para os quais não é alimento natural e conveniente; ao contrário, ou é eliminado no próprio ventre, antes de gerar algum outro humor, cru ou corrompido, ou, se se mantém por muito tempo, produz sofrimento e doença de difícil cura, que corrompe o alimento natural e até a própria carne que necessita de alimento. Mesmo quando é expelido, seja por medicamentos, seja por comidas melhores, ou vencido pelas forças naturais, não é eliminado sem grande prejuízo, pois não leva nada de pacífico aos elementos naturais, porque não se assimila naturalmente com eles.

7. Mesmo concedendo que um alimento em tais condições (chamemo-lo assim por costume) entre no organismo, embora sendo contra a natureza, e se transforme num dos elementos úmidos ou secos, frios ou quentes, essa concessão absolutamente de nada adiantará para nossos opositores, porque os corpos ressuscitados constarão novamente de suas próprias partes e nada do que foi dito é parte, nem tem função ou ordem de parte. Ainda mais: essas coisas nem sempre permanecem com as partes do corpo alimentado, nem ressuscitarão juntamente com os corpos ressuscitados, pois daí para frente de nada lhes servirão o sangue, a pituíta, a bílis, a respiração, porque não terão mais necessidade daquilo que os corpos alimentados necessitavam antes, uma vez que, junto com a necessidade e a corrupção, ser-lhes-á tirado o uso das coisas de que se alimentavam.

Por fim, suponhamos que a transformação desse alimento chegue até a fazer-se carne. Nem mesmo assim haverá necessidade de que essa carne recém-formada de tal alimento e que aderiu ao corpo de outro homem tenha novamente de servir como parte para a composição desse homem, pois nem sempre a carne que assimila conserva a que tomou, nem é constante a que com ela se uniu, nem permanece com aquela com a qual se agregou. Com efeito, são muitas as mudanças que pode sofrer de um ou de outro modo; ora arrastada e levada por trabalhos e preocupações, ora consumida pelas tristezas, fadigas e enfermidades, ou porque, produzindo-se destemperanças por causa do calor ou frio, as partes que receberam o alimento, por permanecerem no que são, não se transformam com a carne e a gordura. Com tantos acidentes que sobrevêm a toda carne, é mais cabível entender que isso passa àquela que se nutre de alimentos que lhe são impróprios, ora ganhando em peso e engordando com o que come, ora rejeitando-o de alguma maneira e emagrecendo, seja por causa de uma só das causas mencionadas, seja por muitas. Permanece nas partes somente aquilo que tem por função unir, proteger e aquecer, isto é, o alimento que foi selecionado pela natureza e que se assimila às partes cuja vida e cujos trabalhos na vida se comportem conforme a própria natureza. No entanto, (nem julgando como se deve o que foi examinado por nós, nem concedendo ao que os opositores nos objetam pode-se demonstrar a verdade do que eles dizem) não é possível que os corpos dos homens se assimilem aos de sua própria natureza, seja por ignorância, seja por artifício de outro, quando alguém come sem dar-se conta de tal corpo, seja quando, conscientemente, por necessidade ou por loucura, se manche com corpo de sua própria espécie, caso nos tenhamos esquecido de que existem certas feras com forma humana ou natureza mista de homem e fera, tal como alguns poetas mais audazes costumam fantasiar.

8. Para que falar dos corpos que não são destinados a ser alimento de nenhum animal e aos quais resta apenas a sepultura na terra, para honra da natureza, se o Criador não destinou nenhum animal como alimento dos de sua própria espécie, embora possam transformar-se em alimento natural para outros de espécie diferente?

Ora, se se pode demonstrar que as carnes humanas estão destinadas a servir de alimento para os homens, nada se oporá a que a antropofagia esteja de acordo com a natureza, como qualquer outra das coisas que a natureza permite, e os que se atrevem a dizer tais atrocidades poderão saciar-se com os corpos de seus mais queridos, como mais apropriados para si, ou dar seus banquetes com estes para seus melhores amigos. Todavia, se apenas falar isso é uma impiedade e os homens comerem os homens é coisa horrorosa e abominável, e não há comida ou ação contra a lei e a natureza mais sacrílega do que esta; e como o que é contra a natureza não pode se transformarem alimento para as partes que dele necessitam, e se não se transforma em alimento também não pode se assimilar ao que naturalmente não pode alimentar, segue-se de tudo isso que os corpos dos homens jamais podem assimilar corpos de sua mesma espécie, por ser alimento contra a natureza, embora passasse muitas vezes por seu ventre para uma amarga desgraça; ao contrário, separados da força nutritiva e espalhados entre aqueles elementos, dos quais receberam sua primeira composição, identificam-se com estes pelo tempo que tocar a cada um. Depois, daí separados novamente por sabedoria e poder de quem compôs toda a natureza do animal, com suas próprias potências, cada um se une naturalmente com cada um, embora tivesse sido queimado pelo fogo, ou apodrecido na água, ou devorado pelas feras ou por quaisquer animais, ou ainda cortado do conjunto do corpo, tenha-se dissolvido de suas outras partes. Membros e membros, unidos novamente, ocuparão o mesmo lugar, para a harmonia e constituição do mesmo corpo e para a ressurreição e vida do que fora antes morto ou totalmente dissolvido. Não me parece oportuno demorar mais sobre este assunto, pois ao menos para aqueles que não sejam meio feras, a decisão é manifesta.

A ressurreição só depende do querer de Deus.

9. Embora haja muitos outros pontos úteis para a presente questão, no momento não quero falar daqueles que se refugiam nas obras humanas e nos homens que as fazem, mas não são capazes de refazer aquelas que se quebram, ou com o tempo envelhecem, ou se destroem de outro modo, e com a comparação dos oleiros e carpinteiros procuram demonstrar que também Deus não quer ou, embora quisesse, não pode ressuscitar os corpos mortos ou já dissolvidos. Contudo, não percebem que com tais raciocínios ofendem a Deus como os mais perversos, colocando no mesmo nível os poderes daqueles que são completamente diferentes, isto é, igualando as substâncias com os que delas usam e as obras de arte com as naturais. Ora, dar importância a tais objeções não careceria de repreensão, pois de fato é idiotice deter-se para refutar o que é superficial e vão. Muito mais glorioso e verdadeiro é dizer que o que é impossível para os homens, é possível para Deus. Se a razão, através deste único argumento glorioso e por tudo o que anteriormente foi examinado, demonstra a ressurreição como possível, evidentemente ela não é impossível. Além disso, também não é certo que Deus não a queira.

Não há nenhuma injustiça na ressurreição

10. ,Com efeito, o que não se quer não é desejado porque é injusto ou indigno. Por sua vez, a injustiça se considera ou em relação à própria pessoa que ressuscita ou em relação a outro fora dela. Mas é evidente que com a ressurreição não se causa prejuízo aos que estão fora do homem, nem a nada daquilo que se inscreve no rol dos seres. De fato, nem as naturezas inteligíveis podem receber algum prejuízo da ressurreição dos homens, pois esta, para existir, não supõe impedimento ou prejuízo ou injúria de qualquer tipo; também não pode receber prejuízo a natureza dos seres irracionais ou a dos inanimados, porque, depois da ressurreição, não mais existirão. Quanto ao que não existe, não há injustiça. Todavia, mesmo supondo que existissem para sempre, também não se cometeria injustiça com eles pelo fato de os corpos humanos serem renovados. Com efeito, se agora estas coisas estão submetidas à natureza dos homens que necessitam de seus serviços, e postas sob o jugo e toda servidão, não se comete contra elas nenhuma injustiça e também não se cometerá quando os homens, tornados incorruptíveis e já sem necessidade de servir-se das coisas, estão se verão livres de toda escravidão. Se elas tivessem voz, também não poderiam queixar-se ao Criador por terem sido rebaixadas mais do que o justo em relação ao homem e por não alcançarem também a ressurreição, pois aquele que é justo não pode atribuir o mesmo fim àqueles que possuem natureza distinta. Além disso tudo, onde não existe julgamento sobre o justo, também não cabe discussão sobre injustiça. Finalmente, também não é possível dizer alguma injustiça em relação ao próprio homem que ressuscita. Este, de fato, é constituído de alma e corpo, e não sofre injustiça nem na alma, nem no corpo. Com efeito, ninguém de bom senso dirá que sofre injustiça na alma. Caso contrário, sem perceber, desse modo também condenaria a presente vida. De fato, se agora, habitando em corpo corruptível e passível, não se lhe faz nenhuma injustiça, muito menos se lhe fará, convivendo com outro incorruptível e impassível. Contudo, também não se agrava em nada o corpo. Com efeito, se agora o corruptível acompanha o incorruptível e não é agravado, evidentemente também não o será quando, incorruptível, acompanhará o incorruptível. Também não se pode dizer que seja de algum modo obra indigna de Deus ressuscitar e novamente reunir um corpo desfeito. Se o menos, isto é, fazer um corpo corruptível e passível não foi indigno, com maior razão o mais não o será, isto é, formá-lo incorruptível e impassível.

Resumo da I parte

11. Portanto, se pelos princípios, que são naturalmente primeiros e pelo que deles se segue, ficam demonstradas cada uma das questões propostas, é evidente que a ressurreição dos corpos desfeitos é obra possível, desejada e digna do Criador. Por aí também se demonstrou a mentira que se opõe a esta verdade e o absurdo da incredulidade de alguns. Que necessidade há de ressaltar a correspondência de uma coisa com outra e sua mútua conexão? Se é que se deva falar de conexão, como se houvesse entre elas alguma diferença que as separassem, e não seja melhor dizer que o possível é também desejado e que o que Deus deseja é absolutamente possível e conforme com a dignidade de quem o deseja.

Antes dissemos de modo suficiente que existe um raciocínio a respeito da verdade e outro para defender a verdade e qual a diferença entre um e outro, assim como a ocasião e para quem eles são úteis. Mas talvez não haja inconveniente, depois de ter atendido à utilidade comum e à conexão do que foi dito com o que resta por dizer, que novamente tomemos aqui o nosso ponto de partida. Ora, a um convém por natureza ser primeiro e a outro escoltar o primeiro, abrir-lhe o caminho e afastar tudo que se lhe opõe e dificulta a sua marcha. O raciocínio a respeito da verdade, necessário a todos os homens para sua segurança e salvação, tem a primazia por sua natureza, por sua ordem e por sua utilidade. Por sua natureza, porque nos proporciona o conhecimento das coisas; por sua ordem, pois existe naquilo e junto com aquilo do qual é indicador; por sua utilidade, enfim, porque é guia de segurança e salvação para os que conhecem. Em troca, o raciocínio para defender a verdade é inferior, tanto por sua natureza como por sua força, pois é menos refutar a mentira do que afirmar a verdade. Também é secundário por sua ordem,pois tem força apenas contra as falsas opiniões, e uma falsa opinião nasce de uma semeadura em cima da outra e de corrupção. Todavia, mesmo que isso seja assim, antepõe-se algumas vezes e acaba sendo mais útil, pois é ele que tira e limpa de antemão a incredulidade que aflige alguns e a dúvida ou falsa opinião dos que se aproximam pela primeira vez. Um e outro tendem ao mesmo fim, pois tanto aquele que refuta a mentira, como aquele que afirma a verdade se referem à piedade; isso, porém, não quer dizer que ambos são uma mesma coisa, mas que um, como disse, é necessário a todos os que crêem e a todos os que se preocupam com a verdade e a salvação; quanto ao outro, por vezes torna-se mais útil para alguns.

Seja dito isso, em resumo, só para recordar o que foi anteriormente exposto. Prossigamos com o nosso propósito, e demonstremos que é verdadeira a doutrina da ressurreição pela própria causa pela qual foi criado o primeiro homem, e os outros depois dele, embora não do mesmo modo; pela natureza comum dos homens como homens e, por fim, pelo julgamento que o Criador fará sobre os mesmos, conforme o tempo que viveram e as leis que observaram; julgamento que ninguém duvidará que será justo.



II PARTE: A CONVENIÊNCIA E A NECESSIDADE DA RESSURREIÇÃO

prova da ressurreição: o destino do homem criado para a eternidade

12. O raciocínio pela causa apóia-se em considerar se o homem foi feito ao acaso e despropositadamente ou se foi feito por algum motivo. Se foi feito por algum motivo, ou teria sido para viver ele próprio depois de feito e permanecer segundo a sua natureza, ou feito para a utilidade de alguém. Se foi feito para utilidade, é a do próprio Criador ou de alguma coisa relacionada a ele e que merece a sua maior preocupação. Ora, se consideramos a questão de modo mais geral, encontramos que nenhum ser sensato e que se move para fazer algo por juízo de razão, fazem vão alguma coisa de tudo o que realiza de propósito. Ao contrário, ele é movido a agir, ou para sua própria utilidade, ou para a utilidade de alguém com o qual se preocupa, ou pela própria coisa realizada, para cuja produção é arrastado por um impulso natural e pelo amor. Vamos dar um exemplo, para que fique mais claro o que dissemos. O homem faz uma casa para a sua própria utilidade; contudo, para seus bois, camelos e outros animais de que necessita constrói como casa uma morada que lhe convém. Aparentemente não para a sua própria utilidade; mas, em última análise, é para isso, embora imediatamente faça isso pelo cuidado com aqueles animais com os quais ele se preocupa. Também procria filhos, não para a sua própria utilidade, nem olhando para qualquer coisa que lhe toca, mas para que aqueles que foram gerados por ele existam e permaneçam o quanto possível, consolando-se do seu próprio fim com a sucessão de seus filhos e descendentes e pensando que desse modo imortaliza o que é mortal. Isso quanto aos homens. Deus, porém, não fez o homem em vão, pois Deus é sábio, e na sabedoria não cabe obra vã; também não é para a sua própria utilidade, pois ele de nada necessita, e quem absolutamente de nada necessita, nenhuma coisa do que ele faz lhe pode servir de qualquer utilidade; mas também não o fez por motivo de qualquer obra das que ele criou, pois nenhuma das criaturas dotadas de razão e juízo, maiores ou menores, nem foi nem é feita para a utilidade de outro, mas para a própria vida e permanência dessas criaturas. Com efeito, nem a própria razão pode encontrar alguma utilidade como causa da criação do homem, pois os seres imortais de nada necessitam e nenhuma utilidade pode lhes advir dos homens; e os irracionais são naturalmente comandados e alguma necessidade dos próprios homens preenche cada um, e não são eles que, pela lei da natureza, irão servir-se destes. De fato, nunca foi e nem é lícito rebaixar aquele que comanda e guia à utilidade do inferior, submetendo o racional ao irracional, que não é apto para comandar. Portanto, se o homem não foi criado sem motivo e em vão, pois nada daquilo que Deus faz pode serem vão, ao menos segundo a intenção de quem o faz; se não foi criado para a utilidade daquele que o faz, nem de alguma outra coisa criada por Deus, é evidente que, quanto à razão primeira e mais geral, Deus fez o homem por motivo do próprio homem e pela sua bondade e sabedoria, que se contempla em toda a criação. Quanto à razão mais imediata das coisas criadas, para a vida dos próprios homens criados, e essa não para acender-se por um momento e extinguir-se totalmente logo depois. De fato, para os répteis, aves, peixes e, dizendo de um modo geral, para todos os irracionais, Deus lhes concedeu vida semelhante; mas para aqueles que levam em si mesmos a imagem do seu Criador, são dotados de inteligência e participam do juízo racional, a estes o Criador destinou uma permanência para sempre, a fim de que, conhecendo o seu Criador e o seu poder e sabedoria, seguindo a lei e a justiça, vivam eternamente sem trabalhar naquelas coisas com que afirmaram a sua vida anterior, apesar de estarem em corpos corruptíveis e terrenos. De fato, o que foi feito por motivo de outra coisa, é natural que também deixe de ser, quando cessa aquilo para o qual foi feito e não pode permanecerem vão, pois nada do que é vão tem lugar nas obras de Deus. Mas o que foi feito em razão do próprio ser e da vida conforme a sua natureza, como a própria causa está ligada à natureza e é olhada apenas quanto ao próprio ser, jamais poderia receber uma causa que destruísse totalmente o seu ser. Todavia, sendo esta considerada sempre no ser, é absolutamente preciso que também se salve o animal criado, realizando e sofrendo o que por natureza lhe convém e contribuindo cada uma das partes de que se compõe naquilo que lhe toca: a alma, sendo e permanecendo uniformemente na natureza em que foi criada e trabalhando naquilo que naturalmente lhe corresponde (e corresponde a ela presidir e comandar os impulsos do corpo e julgar e medir tudo o que ocorre em qualquer momento, servindo-se de critérios e medidas convenientes); quanto ao corpo, movendo-se conforme a natureza do que naturalmente lhe corresponde e recebendo as transformações para as quais está destinado e todas as outras de idade, forma e tamanho, também lhe cabe a ressurreição. Com efeito, a ressurreição é uma espécie de transformação, a última de todas, e transformação para melhor entre aquelas que já se realizaram.

13. Confiando nessas coisas, não menos nas que já aconteceram, e considerando a nossa própria natureza, não só aceitamos com amor a vida de necessidades e corrupção, como convém ao tempo presente, mas esperamos também firmemente a permanência na incorrupção. E esta não a tomamos de modo vão, da fantasia dos homens, iludido-nos com esperanças mentirosas, mas cremos em quem nôla garante de modo absolutamente infalível no desígnio de nosso Criador, segundo o qual fez o homem de alma imortal e de corpo, dotou-o de inteligência e lei ingênita para a sua salvação e para a guarda dos preceitos que ele lhe dera, convenientes com uma vida moderada e razoável. Sabemos muito bem que ele jamais teria feito um animal assim, nem o teria adornado com tudo o que é necessário para a sua permanência, caso não fosse sua vontade que efetivamente permanecesse. Portanto, se o Criador de todo este universo fez o homem para participar da vida racional e, feito contemplador de sua magnificência e sabedoria que em tudo brilham, permanecer sempre nessa contemplação, segundo o seu desígnio e conforme a natureza que lhe coube como sorte, a causa da criação nos garante a permanência para sempre e a permanência garante a ressurreição, pois sem ela não seria possível ao homem permanecer para sempre.

Do que foi dito, fica evidente que, por causa da criação assim como pelo desígnio de seu Criador, a ressurreição fica claramente demonstrada. Sendo tal a causa pela qual o homem foi trazido a este mundo, seria conseqüente considerar agora a razão que a ela se segue naturalmente ou por encadeamento lógico. Segue-se, portanto, o exame da causa da criação, a própria natureza dos homens criados, e a julgamento justo que o Criador fará deles, e a tudo isso, o próprio fim de vida. Como já investigamos o que ocupa o primeiro lugar, passemos agora à natureza do homem.

2ª prova: o desígnio do Criador e a natureza do homem composto de alma e corpo

14. Se a demonstração dos dogmas da verdade ou de quaisquer outros problemas que se propõem à investigação deve trazer evidência infalível às conclusões, ela não toma seu ponto de partida de nenhum exterior ou do que para alguns possa parecer ou lhes tenha parecido, mas da inteligência comum e natural, ou da conexão entre os primeiros princípios e suas conseqüências. Com efeito, ou se trata dos princípios primeiros, e nesse caso basta uma simples advertência para mover a inteligência natural; ou se trata daquilo que por lei natural se segue dos primeiros princípios e da conexão natural. Então deve-se estabelecer uma ordem mostrando o que é aquilo que se segue conforme a verdade do primeiro e principal, a fim de não cometer uma negligência com a verdade ou com a segurança da verdade, nem confundir o que por natureza está ordenado e tem seus próprios limites, tampouco romper o seu encadeamento natural. Disso, parece-me necessário que aqueles que põem um justo empenho na questão proposta e queiram julgar com prudência se existe ou não a ressurreição dos corpos humanos, antes de tudo considerem bem a força dos argumentos que servem para a sua demonstração, que lugar cada um ocupa, qual deles é o primeiro, qual o segundo, qual o terceiro e qual o último. Portanto, se tratamos de estabelecer nisso uma ordem, é preciso em primeiro lugar a causa da criação do homem, isto é, o desígnio segundo o qual o Criador fez o homem; a esta deve-se unir naturalmente a natureza dos próprios homens criados, não porque ocupe o segundo lugar na ordem, mas porque não é possível julgar ambas de uma só vez, por mais que em sumo grau coexistam uma com a outra e ambas tenham a mesma força para a questão presente. Demonstrada claramente por esses argumentos como sendo primeiros e que tomam seu princípio da própria criação, a ressurreição da carne não pode ser menos confirmada pelas razões da providência, isto é, pelo prêmio ou castigo que se deve a cada homem, conforme o julgamento justo, e pelo fim da vida do homem. Com efeito, muitos que discutiram a doutrina da ressurreição apoiaram toda a causa na terceira ordem dos argumentos, crendo que acontecerá apenas por causa do julgamento; isto, porém, que se demonstra com toda a clareza como falso, pelo fato de que todos os homens que morrem ressuscitarão, mas nem todos os ressuscitados serão julgados. Se apenas a justiça do julgamento fosse a causa da ressurreição, aqueles que não cometeram pecado, nem fizeram algum bem, não ressuscitariam, isto é, as crianças muito pequenas; mas como todos ressuscitarão e, entre outros, também os que morreram em tenra idade, estes mesmos justificam que não será por meio do julgamento, como razão primeira, que se dará a ressurreição, mas pelo desígnio do Criador e pela natureza das obras criadas.

15. Mesmo quando a causa que vemos na criação dos homens basta por si só para demonstrar que a ressurreição se seguirá por natural conseqüência aos corpos desfeitos, é justo, todavia, não desprezar nenhum dos argumentos anteriormente propostos e, coerentes com o que dissemos, frisar, para os que não podem vê-los por si próprios, quais conseqüências se seguem de cada um deles. Antes de tudo, a natureza dos homens, que nos leva à mesma conclusão e tem a mesma força para esta estabelecer a fé na ressurreição. Agora, como universalmente toda a natureza consta de alma imortal e de corpo que foi adaptado a essa alma no momento da criação; como Deus não destinou tal criação, tal vida e toda a existência à alma por si só ou ao corpo separadamente, mas aos homens, compostos de alma e corpo, a fim de que pelos mesmos elementos dos quais se geram e vivem, cheguem, terminada a sua vida, a um só e comum termo; como de corpo e alma se forma um só animal que sofre o mesmo que alma e corpo sofrem, que age e realiza tanto o que se refere à vida sensível como ao juízo racional, é inteiramente necessário que todo esse conjunto se refira a um só fim e, desse modo, em tudo concorra a uma só harmonia e à mesma união de sentimentos no homem: seu nascimento, sua natureza, sua própria vida, suas ações, suas paixões, sua existência e o fim conveniente à sua natureza. Mas se deve haver uma só harmonia de todo o animal e uma união de sentimento entre o que procede da alma e o que é realizado pelo corpo, é preciso que haja um só fim para todos esses elementos. Haverá um só fim, se o animal, de cujo fim se trata, é de fato o mesmo, segundo a sua constituição; e será claramente o mesmo, se se dão os mesmos elementos de que se compunha como partes; e os elementos serão os mesmos segundo sua própria conexão, se os que se dissolveram se unirem novamente para a constituição do animal. A constituição dos próprios homens demonstra que a ressurreição dos corpos mortos e desfeitos necessariamente se seguirá; caso ela não houvesse, não seria possível que as partes se unissem naturalmente umas com as outras, nem a natureza se comporia dos mesmos homens.

Além disso, se foram dadas aos homens inteligência e razão para discernir o inteligível, e não só as substâncias, mas também a bondade, sabedoria e justiça do Doador, permanecendo aquilo pelo qual lhe foi dado o juízo racional, necessariamente deve também permanecer o juízo que foi dado para o seu discernimento. E não é possível que este permaneça se não permanecer a natureza que o recebe e na qual ele está. Ora, quem recebe a inteligência e a razão é o homem e não a alma por si só; logo, o homem, que consta de alma e corpo, deve permanecer para sempre. E impossível, porém, que ele permaneça se não ressuscita. De fato, se a ressurreição não se verifica, a natureza dos homens como homens não pode permanecer e, se a natureza dos homens não permanece, a alma se ajustou em vão às necessidades e sofrimentos do corpo, em vão foram postas peias ao corpo, impedindo-o de satisfazer seus instintos, sendo obediente às rédeas e ao freio da alma; são vãos a inteligência, o pensamento, a observância da justiça, a prática de qualquer virtude, a promulgação e ordenação das leis, em uma palavra, é vão tudo o que há de belo nos homens e para os homens; ainda mais: a própria criação e a natureza dos homens são vãs. Se, porém, ser vão está excluído de todas as obras de Deus e seus dons em todas as partes, é absolutamente necessário que, junta­ mente com a alma imorredoura, a permanência do corpo perdure eternamente conforme a sua própria natureza.

16. Ninguém se surpreenda por chamarmos de permanência uma vida interrompida pela morte e corrupção, mas considere que não existe apenas uma razão para essa denominação, nem há apenas uma medida da permanência, pois a natureza dos que permanecem também não é apenas uma. Com efeito, se cada coisa que permanece tem a permanência segundo a sua própria natureza, não é possível encontrar permanência equiparável nos seres puramente incorruptíveis e imortais, pelo fato de que as substâncias superiores não podem ser comparadas às inferiores, nem se deve buscar nos homens uma permanência simples e imutável, pois aqueles foram, desde o princípio, criados imortais e permanecem imorredouros pelo único desígnio de quem assim os fez. Quanto ao corpo, os homens recebem a incorruptibilidade pela transformação exigida pela razão da ressurreição, embora quanto à alma gozem da permanência imutável desde a criação. Visando à ressurreição, aguardamos por um lado a dissolução do corpo que se seguirá à vida de necessidades e corrupção; depois desta vida, porém, esperamos confiantemente na permanência da incorruptibilidade, pela qual não igualamos o nosso fim com o fim dos irracionais, nem a permanência dos homens com a permanência dos seres imortais, a não ser que, inadvertidamente, equiparemos desse modo a natureza e a vida dos homens com o que não convém equipará-Ias. Assim, não nos devemos preocupar se notamos alguma desigualdade na permanência dos homens, nem nos devemos desesperar da ressurreição porque a separação da alma do corpo e a dissolução de suas partes e membros corte a continuidade da vida. Com efeito, não recusamos dizer que há uma mesma vida só porque os relaxamentos das sensações e potências naturais, que naturalmente acontecem no sono, pareçam interromper a vida consciente e obriguem o homem a dormir em períodos regulares de tempo e, de certo modo, a reviver novamente. Por isso, creio que alguns chamam o sono de irmão da morte, não porque queiram explicar a genealogia deles através de mesmos pais ou antepassados, mas por causa da semelhança de situação dos que morrem e dos que dormem: quanto à sua tranqüilidade, que tanto uns como outros não se dão conta do que os rodeia ou do que lhes acontece e, ainda mais, nem mesmo de sua própria existência e vida. Portanto, se não recusamos dizer que a vida dos homens é a mesma vida, embora cheia de tanta desigualdade desde que nascemos até a nossa dissolução e interrompida por tudo o que dissemos, também não nos desesperaremos da vida após a dissolução, que traz consigo a ressurreição, por mais que, durante um pouco de tempo, seja interrompida pela separação da alma e do corpo.

17. A mesma natureza humana que, segundo o desígnio do seu Criador, desde sua origem tem a desigualdade por herança, 'tem também de forma desigual a vida e a permanência, interrompida ora pelo sono, ora pela morte, ora pelas transformações de cada idade, sem que apareça claramente nas primeiras aquelas que acontecerão depois. Quem poderia crer, se a experiência não o ensinasse, que numa gota de esperma, uniforme e diluído, está contido o princípio de tantas e tão grandes faculdades, ou que tanta diferença de massas estão aí reunidas e contraídas, isto é, os ossos, os nervos, as cartilagens, além dos músculos, carnes, entranhas e todas as partes do corpo? De fato, não se pode ver nada disso no sêmen úmido, nem se vê nas crianças o que serão os homens feitos, nem nos homens feitos o que serão os homens maduros, nem nos maduros o que serão os velhos. Entretanto, apesar de algumas coisas ditas não manifestarem absolutamente e outras indicarem apenas de maneira obscura o que será o ulterior desenvolvimento natural, nem manifestarem as transformações que sobrevêm à natureza humana, todos aqueles que não tem o juízo cego, pela maldade e a preguiça, a respeito dessas coisas sabem que antes de tudo se deve lançar o sêmen e, articulando-se as partes e membros do corpo e dado à luz o concebido, acontece o crescimento e, depois do crescimento, a maturidade; após a maturidade, o relaxamento das faculdades físicas até a velhice e, finalmente, esgotado o corpo, a dissolução. Desse modo, nesta ordem das coisas, sem que o sêmen tenha inscritas em si mesmo a vida e a forma dos homens, nem a vida a dissolução nos primeiros princípios, o encadeamento dos fatos naturais nos garante a fé do que acontecerá, mesmo não podendo vê-lo claramente; muito mais a razão, que segue o rastro da verdade por conexão natural, nos garante a fé na ressurreição, visto que ela é mais segura e superior do que a experiência para confirmar a verdade.

3ª prova: tanto o corpo quanto a alma devem ser premiados ou punidos

18. As razões que, há pouco, nos propusemos examinar e que demonstram a ressurreição, são todas da mesma espécie, pois nascem do mesmo princípio e este princípio é a origem, por criação, dos primeiros homens. Contudo, umas se afirmam pelo mesmo primeiro princípio de que nascem; outras, ao seguir a natureza e a vida dos homens, adquirem sua força demonstrativa a partir da providência de Deus para conosco. Com efeito, a causa por que e para que foram criados os homens, unida à natureza deles, adquire sua força a partir da própria criação. Contudo, a razão da justiça, segundo a qual Deus julga os que vivem bem ou mal, é tomada a partir do fim destes. De fato, nascem daí, porém dependem mais da providência.

Na medida de nossas possibilidades, provada a nossa tese através das primeiras razões, será bom também procurarmos prová-la por estas últimas, isto é, o prêmio ou castigo que, por um julgamento justo, é devido a cada homem, e, segundo a finalidade da vida humana e destas mesmas colocar por primeiro aquela que é principal e considerar antes de tudo o motivo do julgamento. Por causa da nossa preocupação de princípio e de ordem que convém à nossa tese, temos que fazer uma única advertência: aqueles que admitem Deus como Criador de todo este universo, devem também atribuir à sua sabedoria e justiça a guarda e providência de todo o criado, se desejam permanecer fiéis a seus próprios princípios. Se assim pensam sobre isso, não podem considerar que algo seja alheio ao governo e providência de Deus, mas reconhecer que o cuidado do Criador se estende a tudo, tanto ao invisível como ao visível, ao grande e ao pequeno. Com efeito, todo o criado necessita do cuidado do Criador, e, particularmente, cada coisa, segundo foi criada e para que foi criada. Não julgo oportuno descer a pormenores ou dividir agora por seus gêneros e querer fazer um longo catálogo do que é conveniente para cada natureza. Quanto ao homem, do qual agora nos propomos falar, como necessitado, ele necessita de alimento; como mortal, de sucessão; como racional, de julgamento. Ora, se cada uma das coisas ditas são naturais ao homem, e ele necessita de alimento para a vida, de sucessão para a permanência da espécie e de justiça para o que de legítimo têm o alimento e a sucessão, é forçoso que a justiça se refira também ao composto humano, pois a este se referem o alimento e a sucessão. Chamo de composto o homem com seu corpo e alma, e digo que esse homem é o responsável por todas as suas ações e receberá o prêmio ou castigo por elas. Ora, se um julgamento justo dará sobre o composto a sentença das obras, nem a alma sozinha receberá a recompensa do que realizou junto com o corpo, pois por si mesma ela é insensível aos pecados que possam ser cometidos pelos prazeres, alimentos ou cuidados corporais, nem o corpo sozinho, pois por si mesmo ele é incapaz de discernir a lei e a justiça. Ao contrário, é o homem, composto de alma e corpo, que recebe o julgamento de cada uma das obras por ele feitas; a razão, porém, não vê que isso se realize na vida presente, onde não se dá a cada um o que merece, pois vemos que muitos ateus e pessoas entregues a toda iniqüidade e maldade, chegam ao fim de sua vida sem experimentar nenhum mal e, por outro lado, outros que levam uma vida exercitada em toda virtude vivem entre dores, injúrias, calúnias, tormentos e todo tipo de calamidades; depois da morte isso acontece, uma vez que não existe mais o composto humano, pois a alma está separada do corpo e este disperso novamente naqueles elementos de que foi composto, sem conservar mais nada do seu primeiro tamanho e forma, e muito menos memória de suas obras. Portanto, permanece apenas evidentemente o que diz o Apóstolo: é preciso que este corpo corruptível e disperso se revista de incorruptibilidade, para que, vivificados pela ressurreição, seus membros mortos e novamente unidos os que se haviam separado e até totalmente dissolvido, cada um receba justamente o que realizou por meio do seu corpo, bem ou mal.

19. Portanto, contra os que confessam a providência e admitem os mesmos princípios que nós, mas depois, não se sabe como, abandonam seus próprios supostos, essas razões e muitas outras devem servir, caso se queira ampliar o que aqui foi dito de modo breve e rápido. Mas contra os que diferem de nós nos primeiros princípios, seria bom propor-lhes antes outro ponto de partida, discutindo com eles as suas opiniões e propor-lhes a seguinte questão: Relega-se a vida e a existência inteira dos homens e profundas trevas se derramam pela terra, ocultando na ignorância e silêncio os próprios homens e suas ações, ou não será mais seguro opinar que o Criador preside às suas próprias obras e vigia sobre tudo o que existe ou acontece, e é juiz de tudo o que se faz ou que se quer? Com efeito, se não existe nenhum julgamento de nenhuma das ações dos homens, estes não terão nenhuma vantagem sobre os irracionais, ou melhor, serão mais miseráveis do que eles, pois refreiam suas paixões e se preocupam com a piedade, a justiça e as outras virtudes. A vida do animal e da fera é a melhor; a virtude é uma insensatez; a ameaça da justiça é pura piada; o bem supremo é gozar de todos os prazeres. O dogma universal e a única lei de todos eles é aquele dito dos intemperantes e dissolutos: "Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos". Com efeito, a finalidade de tal vida, segundo alguns, não é sequer o prazer, mas a insensibilidade absoluta.

Todavia, se o Criador dos homens tem algum cuidado com suas próprias criaturas, e em algum lugar se guarda a justa distinção entre os que viveram bem e os que viveram mal, isso acontecerá ou na vida presente, quando ainda vivem os que vivem conforme a virtude ou a maldade, ou depois da morte, na separação da alma e do corpo e dissolução deste. Ora, em nenhum dos dois casos é possível achar que se guarde o julgamento justo. Com efeito, nem os bons recebem na vida presente a recompensa de sua virtude, nem os maus o castigo de sua maldade. E omito dizer que, subsistindo a natureza em que agora estamos, a natureza mortal não é capaz de sofrer o castigo adequado a muitos delitos ou a delitos extraordinariais-zo mente graves. De fato, aquele que matou milhares e milhares, seja ladrão, seja príncipe ou tirano, não pode pagar com uma só morte o castigo de tantos. E aquele que não teve jamais opinião verdadeira sobre Deus, mas viveu entre insolências e blasfêmias de toda espécie, que desprezou o divino, violou as leis, ultrajou tanto crianças como mulheres, assolou injustamente cidades, incendiou casas junto com seus moradores, devastou comarcas, destruiu multidões, povos e até uma nação inteira, como essa pessoa bastará em seu corpo corruptível para o castigo adequado de tantos crimes, pois a morte se antecipa àquilo que merece e a natureza mortal não é suficiente nem para um só deles? Portanto, nem na vida presente se mostra =julgamento segundo o merecido, nem depois da morte.

Necessidade da ressurreição do corpo para que haja julgamento justo

20. Com efeito, ou a morte é a extinção completa da vida, com a alma se dissolvendo e corrompendo juntamente com o corpo; ou a alma permanece por si mesma, como indissolúvel, indissipável e incorruptível, enquanto o corpo se corrompe e se desfaz, sem guardar memória de qualquer de suas obras ou consciência do que nela sofrera. De fato, extinguida totalmente a vida dos homens, de nada servirá o cuidado de homens que não vivem, nem o julgamento sobre aqueles que viveram conforme a virtude ou conforme a maldade. Nessa hipótese, porém, ficaremos de novo rodeados por todos os absurdos da vida sem lei e o enxame de aberrações que a esta seguem e a impiedade do ateísmo que é o total e o resumo dessa iniqüidade.

Na hipótese de que seja apenas o corpo que se corrompa e cada uma de suas partes desfeitas se juntem com as de sua espécie e a alma permaneça por si mesma como incorruptível, também assim não haverá lugar para o julgamento sobre ela, pois nela não haveria justiça, pois não é lícito supor que haja em Deus ou por Deus qualquer julgamento em que não haja justiça, e não há justiça no julgamento se não se conserva aquele que praticou a justiça ou a iniqüidade. De fato, aquele que praticou cada uma das ações da vida sobre as quais versa o julgamento foi o homem e não a alma por si mesma. Dizendo numa palavra: esse raciocínio não salva a justiça em nenhuma das duas hipóteses.

21. Se se trata de premiar as boas obras, cometer-se-á patente injustiça com o corpo, porque depois de ter tomado sua parte com a alma nos trabalhos da virtude, ele não a terá no prêmio; e enquanto a alma, em muitos casos, irá gozar de certa indulgência por certos pecados, aos quais foi arrastada pela debilidade e necessidade do corpo, este não entra na parte das obras boas, pelas quais suportou trabalhos na vida. Se, pelo contrário, se trata de julgar os pecadores, não se mantém a justiça para com a alma, se somente ela tivesse que sofrer o castigo do que pecou por incômodo do corpo e arrastada pelos instintos e movimentos próprios do corpo, algumas vezes como que arrebatada e seqüestrada, outras levada por ímpeto demasiadamente violento, outras por certa concomitância, por dar-lhe satisfação e atender ao cuidado de sua constituição. Como não considerar injustiça que se julgue a alma sozinha por aquilo que não lhe é próprio segundo a sua natureza, pois não sente instinto, nem inclinação, nem impulso, por exemplo, para a lascívia, a violência, a avareza, a injustiça e tudo o que nessas matérias se possa cometer de pecado? Com efeito, se é certo que a maior parte de tais males procedem do fato de os homens não dominarem as paixões que os atacam - e são atacados pelas necessidades e exigências do corpo, pois por meio delas se busca a posse e, melhor ainda, o uso das coisas; daí o casamento e todas as ações, por fim, da vida sobre a qual possa acontecer o que é pecaminoso e o que não é - onde estará a justiça, se se julga a alma sozinha em coisas em que o corpo sente primeiro a paixão e é este que arrasta a alma à participação da paixão e comunicação de ações que satisfazem suas necessidades? Então os instintos e prazeres, temores e tristezas, em cuja desordem se enraíza a responsabilidade, teriam seu movimento proveniente do corpo; em troca, os pecados que procedem de tudo isso e os castigos que acompanham os pecados seriam atribuídos unicamente à alma, sendo que esta não tem nenhuma necessidade disso, pois não sente instinto nem temor e não sofre por si mesma nada semelhante do que o homem naturalmente sofre. Mesmo quando sentimos que as paixões não pertencem somente ao corpo, mas ao homem, e nisso dizemos bem, pois corpo e alma constituem uma única vida, nem por isso diremos que tais paixões convêm à alma, se considerarmos simplesmente a sua natureza própria. Se ela não tem nenhuma necessidade de alimento, nunca pode desejar aquilo de que não tem nenhuma necessidade para existir, nem poderia lançar-se na consecução de algo que por natureza não pode usar de maneira nenhuma. Não pode também entristecer-se pela falta de dinheiro e riquezas, que nada têm a ver com ela. Se é superior a qualquer corrupção, não teme absolutamente nada que possa corrompê-la. Com efeito, não se espanta com a fome, a enfermidade, a mutilação, o ultraje, o fogo, o ferro, porque não é possível que tais coisas lhes causem algum dano; nem a dor, pois tanto os corpos como os poderes corporais não podem tocá-lo de maneira alguma. Se é absurdo atribuir as paixões como coisa própria das almas, seria o cúmulo da injustiça e algo indigno do julgamento Deus imputar unicamente às almas os pecados que nascem das paixões e os castigos que estes merecem.

22. Além do que foi dito, não seria absurdo que a virtude e a maldade não possam ser concebidas na alma separadamente do corpo - de fato, as virtudes que conhecemos são virtudes do homem e também a maldade que a elas se opõe, e não da alma separada do corpo e por si mesma - e, em troca, o prêmio ou castigo por elas recaísse unicamente sobre a alma? Poderia alguém compreender o valor e a constância unicamente na alma, que não sente medo da morte ou ferimento, da mutilação, de dano, de tormento, nem das dores que a isso se seguem, nem da calamidade que daí provém? Ou a temperança e castidade, quando nenhum desejo a arrasta para a comida, para a união sexual ou para outros prazeres e deleites, nem qualquer outra coisa a perturba por dentro ou a provoca e irrita de fora? Ou a prudência, se ela não tem diante de si o que deve fazer ou não fazer, escolher ou fugir, ou melhor, se ela não tem nenhum movimento ou impulso para nenhuma ação? Onde encontrar justiça conveniente para as almas, seja entre si mesmas, seja em relação a qualquer outro ser de espécie igual ou distinta, se elas não têm como, meios, modo para poder dar a cada um o que lhe corresponde por mérito ou eqüidade, a não ser a honra devida a Deus? Por outro lado, elas não possuem por si impulso ou movimento para usar as próprias coisas ou abster-se das alheias, pois o uso ou abstenção das coisas é considerado naquilo que naturalmente pode ser usado; a alma, contudo, por natureza, não necessita de nada e não pode usar nada; por isso, nem mesmo a chamada justiça individual é possível realizar-se numa alma dessa natureza.

23. Além de todas essas coisas absurdas, há outra: as leis são dadas aos homens e, em troca, os prêmios e castigos do fato, legítima ou ilegitimamente, recairiam unicamente sobre a alma. Se alguém recebe as leis, é justo que também receba o castigo pela sua infração, e foi o homem inteiro que recebeu as leis e não a alma por si, é o homem inteiro e não a alma por si que deve responder pelos pecados contra as leis. Com efeito, Deus não mandou que as almas se abstivessem daquilo que nada tem a ver com elas, como o adultério, o assassínio, o roubo, a rapina, a desonra dos pais e, em geral, de todo desejo que tende ao dano ou prejuízo do próximo. Assim, o mandamento: "Honra teu pai e tua mãe" não se adapta somente às almas, pois tais nomes não têm nada a ver com elas. Não são as almas que, gerando outras almas, recebem os nomes de pai e mãe, mas os homens que geram os homens. Igualmente: "Não cometerás adultério" não se pode convenientemente dizer ou compreender que se refere às almas, pois nelas não existe diferença de macho e fêmea, nem aptidão para a união sexual, nem instinto para ela. E não havendo instinto, também não é possível que haja união. Ora, naqueles em que não se dá absolutamente a união, também não se dará a legítima união, que é o matrimônio. E se não se dá a legítima, tampouco se dará a ilegítima, nem o desejo da mulher alheia e relação com ela, que é o chamado adultério. Também não se refere às almas a proibição do roubo e da avareza, porque elas não necessitam dessas coisas, cuja necessidade natural costuma ser causa dos roubos e rapinas naqueles que as praticam, como o ouro, a prata, um animal ou qualquer outra coisa apropriada para alimento, vestuário e uso. Com efeito, tudo o que os necessitados podem cobiçar como útil, é inútil para uma natureza imortal.

Deixemos, porém, a enumeração mais completa sobre tudo isso para aqueles que queiram olhar com mais cuidado cada ponto em particular ou lutar com mais afinco contra os adversários. Para nós bastam os argumentos que acabamos de expor e os que, de acordo com estes, demonstram a ressurreição. Não é oportuno que insistamos mais sobre eles, pois não nos propusemos como meta não omitir nada do que se poderia dizer, mas apenas expor sumariamente aos assistentes o que se deve pensar sobre a ressurreição e acomodar à capacidade dos ouvintes os argumentos que conduzem a isso.

4ª prova: o fim último do homem a felicidade, não é atingida nesta vida

24. Tendo já examinado em certa medida os argumentos propostos, resta-nos considerar a razão que se refere ao fim do homem, a qual já aparece clara pelo que dissemos e só necessita de exame e consideração aqui para não parecer que deixamos de mencionar alguma coisa do que foi proposto e prejudicamos a hipótese e a divisão que estabelecemos no começo. Portanto, por essa razão e em atenção ao que se poderia objetar sobre isso, haveria apenas que acrescentar uma observação, isto é, que tanto os seres de constituição natural, como os que se produzem pela arte, devem cada um ter o seu próprio fim, coisa que a inteligência universal nos ensina e aquilo que temos diante de nossos olhos nos testemunha. Com efeito, não vemos que um é o fim a que se propõem os lavradores e outro os médicos? Também não é um o fim das coisas que nascem da terra e outro dos animais que se criam sobre ela e se propagam por uma espécie de encadeamento natural? Se isso é claro e absolutamente necessário que o fim, segundo a natureza, siga as faculdades naturais ou técnicas e suas operações, também é absolutamente necessário que o fim do homem, devido à sua natureza peculiar, também se afaste do comum dos outros. De fato, não é lícito supor que deverão ter o mesmo fim os seres carentes de juízo racional e os que agem conforme a lei e a razão neles ingênitas e usam de prudente vida e justiça. Portanto, nem aquela famosa insensibilidade à dor pode ser fim próprio do homem, pois participariam dela até os que não sentem absolutamente nada, tampouco o gozo daquilo que alimenta ou deleita o corpo com toda a multidão dos prazeres, a não ser que demos a primazia à vida dos animais e sintamos que a virtude não tem nenhum fim. Com efeito, penso que este é o fim próprio dos animais e rebanhos, não, porém, de homens dotados de alma imortal e juízo racional.

25. De outro lado, também não pode ser fim do homem a felicidade da alma separada do corpo, pois não se deve considerar a vida ou o fim de um dos elementos de que o homem se compõe, mas a vida e o fim do composto dos dois. Com efeito, assim é todo homem ao qual cabe como sorte a presente existência, e a vida deste é a que deve ter algum fim peculiar. Ora, se o fim deve ser o composto, não é possível encontrar esse fim nem enquanto os homens vivem, pelas causas muitas vezes alegadas, nem a alma separada do corpo, uma vez que tal homem não pode sequer subsistir, pois logo o corpo se desfaz e se dispersa totalmente, embora a alma permaneça por si mesma. Portanto, é absolutamente necessário que o fim do homem apareça em outra constituição do composto e do próprio animal. E se isso acontece necessariamente, é absolutamente necessário que se dê a ressurreição dos corpos mortos e até totalmente dissolvidos e que novamente se reconstituam os mesmos homens, porque a lei da natureza não estabelece simplesmente o fim de quaisquer homens, mas dos mesmos homens que viveram a vida anterior. Mas não é possível reconstituir os mesmos homens, se não se devolvem os mesmos corpos às mesmas almas, e não é possível que as mesmas almas recebam de outro modo os mesmos corpos, a não ser pela ressurreição. De fato, depois que esta se houver realizado, segue-se também o fim conveniente à natureza humana; e não erraria o fim da vida inteligente e do juízo racional, quem o pusesse em conviver eternamente com aquilo a que a razão natural se adapta primariamente e acima de tudo: a contemplação do Doador e a glória e júbilo daquilo que foi por ele decretado, por mais que a maior parte dos homens, aderidos com mais paixão e veemência às coisas daqui de baixo, passem a vida sem alcançar essa meta. Com efeito, o destino comum não se invalida por causa da multidão dos que não conseguem o seu próprio fim, pois o exame dessas questões é peculiar a cada um, e a cada um é medido o prêmio ou o castigo por sua vida boa ou má.



Petição em favor dos cristãos

Atenágoras de Atenas-séc.II

Estrutura da petição

A Petição está, portanto, assim estruturada: caps. 1- 3 constituem uma introdução contendo a dedicatória e o objetivo da obra. No capo 4, o autor passa a refutar as acusações. A primeira é a de ateísmo. Atenágoras emprega 26 dos 37 capítulos da Petição para refutar esta acusação. Em síntese, ele diz: os cristãos não são ateus, mas adoram o Deus único, criador do universo. O Deus dos cristãos é único, mas, também, trino. No cap., 10, demons- trando racionalmente a unicidade de Deus, busca esclarecer o novo conceito de Deus uno-trino: "O Filho de Deus que é mente (nous)... conjugado com o Logos"."O Espírito Santo flui de Deus... ". OS cristãos não oferecem sacrifícios sangrentos não porque são ateus, mas porque o Deus verdadeiro só aprecia sacrifícios espirituais. Se eles se recusam a cultuar os deuses, é porque os julgam indignos de qualquer espécie de culto. Com moderação, mas com firmeza, Atenágoras diz que estes deuses são simples criaturas e os milagres que lhes são atribuídos são obras do demônio. Os cristãos, ao contrário dos ateus, praticam um culto mais puro, mais elevado e perfeito que os pagãos (caps. 4-30).

Nos caps. 31-34, o autor se empenha em demonstrar que os cristãos não cometem nenhuma imoralidade, nenhum ato incestuoso como se propaga. Ao contrário, interditam até mesmo os pensamentos maliciosos, por temor do castigo divino: "Nós, porém, estamos tão longe de ver isso com indiferença que não nos é lícito sequer olhar com intenção de desejo. (...) Como não acreditar que são castos os que nada podem olhar além daquilo para o qual Deus formou os olhos, isto é, para que fossem nossa luz, aqueles que consideram adultério o olhar com prazer, pois os olhos foram criados para outra finalidade, e os que serão julgados até pelos seus pensamentos?" (cap. 32). Os cristãos guardam, portanto, a castidade matrimonial e estão convencidos da indissolubilidade do matrimônio. Nem mesmo a morte pode dissolver este vínculo, por isso as segundas núpcias, mesmo em caso de viuvez, são consideradas "adultério decente" ou "adultério dissimulado" (cap. 33).

Finalmente, nos caps. 35-36, Atenágoras defende os cristãos contra a acusação de antropofagia. Ao contrário, os cristãos respeitam extremamente a vida humana; fogem dos jogos do circo; condenam o aborto por julgarem- no homicídio, pois o feto é já ser vivo e objeto dos cuidados de Deus. Além do mais, a fé na ressurreição é força que os impede de cometer estes excessos. F. Cayré sintetiza assim esta Apologia: "A apologia de atenágoras é uma das mais belas, por sua alta qualidade literária, pela lealdade na discussão e pela ciência de seu autor. A composição é remarcavelmente clara e metódica, a frase, sempre completa, muito rica em idéias, o raciocínio firme e vigoroso, o estilo preciso e sóbrio, por vezes conciso até à secura. Todo o conjunto deste escrito revela verdadeiro filósofo e mestre que discute segundo as regras. Atenágoras foi principalmente dialético, como Taciano polemista e como Justino, apóstolo. Além disso, tem mais de um ponto de semelhança com Justino, em particular na maneira benevolente com que trata a filosofia e os filósofos, e no comum esforço para aliar a filosofia e a religião" (Patroiogie. Histoire de ia Théoiogie I, Paris, 1947, p. 127.. )


por Atenágoras de Atenas-séc.II

INTRODUÇÃO E DEDICATÓRIA

Aos imperadores Marco Aurélio Antonino e Lúcio Aurélio Cômodo, armênicos, somáticos e, o que é o máximo título, filósofos.

1. Em vosso império, ó grandes entre os reis, certas pessoas usam alguns costumes e leis, e outras seguem outros, e a ninguém é proibido, nem por lei nem por medo de castigo, amar suas tradições pátrias, por mais ridículas que sejam. Desse modo, o troiano chama deus a Heitor e adora Helena, crendo que ela é Adrastéia; o lacedemônio cultua Agamenon como se fosse Zeus, Filonoe, filha de o Tindáreo, como se fosse Enódia; o ateniense sacrifica a Ereteu Posêidon, e os atenienses celebram iniciações e mistérios a Agraulo e Pandroso, iniciações que foram consideradas sacrílegas por terem aberto a caixa. Numa palavra, os homens, conforme as nações e os povos, oferecem os sacrifícios e celebram os mistérios à vontade. Quanto aos egípcios, têm como deuses os gatos, crocodilos, serpentes, víboras e cães. Vós e vossas leis tolerais tudo isso, pois considerais ímpio e sacrílego não crer de modo algum em Deus. É necessário que cada um tenha os deuses que quiser a fim de que, por temor à divindade, se abstenha de cometer impiedades. A nós, porém, embora não vos ofendais, como o vulgo, já ficamos sendo odiados, só em ouvir o nome visto que não são os homens que merecem o ódio, mas a injustiça, que merece pena e castigo. Daí que admirando a vossa suavidade e mansidão, o vosso amor à paz e a toda humanidade, as pessoas particulares são regidas por leis iguais, e as cidades, segundo a sua dignidade, participam também de igual honra, e a terra inteira goza, graças à vossa inteligência, de profunda paz. Quanto a nós, que somos chamados cristãos, não tendo providência por nós, permitis que, sem cometer nenhuma injustiça, mas pelo contrário, como a continuação do nosso discurso demonstrará, comportando-nos de modo mais piedoso e justo do que ninguém, não só diante da divindade, mas também em relação ao vosso império, permitis que sejamos acusados, maltratados e perseguidos, sem outro motivo para que o vulgo nos combata, a não ser apenas o nosso nome. Todavia, nós nos atrevemos a vos manifestar a nossa vida e doutrina, e com o nosso discurso compreendereis que sofremos sem causa e contra toda lei e razão, e vos suplicamos que também a nós deis alguma atenção, para que cesse, finalmente, a degolação a que nos submetem os caluniadores. Com efeito, não é perda de dinheiro que nos vem de nossos perseguidores, não é desonra no desfrutar de nossos direitos de cidadania, não é o prejuízo em alguma das outras coisas menores. Nós desprezamos tudo isso, por mais importante que pareça ao vulgo. Nós aprendemos não só a não ferir aquele que nos fere, mas também a não perseguir na justiça aqueles que nos roubam e saqueiam; mais ainda, àquele que nos dá uma bofetada numa face, devemos oferecer-lhe a outra, e a quem nos tira a túnica, devemos dar-lhe também o manto. Já que renunciamos às riquezas, o que eles atentam é contra os nossos corpos e as nossas almas, espalhando incontáveis acusações, que nem por suspeita tocam a nós; tocam sim aos que as propagam e aos de sua laia.

2. Se alguém é capaz de nos convencer de termos cometido uma injustiça, pequena ou grande, não fugiremos do castigo, mas pedimos antes que se nos inflija o que for mais áspero e cruel. Mas se a nossa acusação é tão somente o nome - e pelo menos até hoje o que propalam sobre nós é apenas vulgar e estúpido rumor das gentes, e não foi provado que algum cristão tenha cometido um crime - a vossa questão é, como imperadores máximos, humaníssimos e amicíssimos do saber, rejeitar por lei a calúnia feita contra nós, a fim de que, assim como toda a terra, pessoas particulares e cidades gozam de vosso benefício, também nós vos possamos agradecer, glorifi­cando-vos por termos deixado de ser caluniados. Com efeito, a vossa justiça não diz que, quando se acusa a outros, não se pode condená-los antes de tê-los interroga­ do? Quanto a nós, porém, vale mais o nome do que as provas do julgamento, pois os juízes não buscam averi­guar se o acusado cometeu algum crime, mas tratam-no com insolência por causa do nome, como se fosse crime. Entretanto, em si e por si, um nome não pode ser conside­rado bom ou mau, e sim que pareça bom ou mau conforme sejam boas ou más as ações que ele supõe. Sabeis disso melhor do que ninguém, pois sois formados na filosofia e em toda a cultura. Por isso, mesmo os que são julgados diante de vós, embora sejam acusados dos maiores crimes, estão confiantes e, sabendo que examinais sua vida e não atacais os seus nomes, se são vazios, nem atendeis às acusações, se são falsas, recebem com o mesmo espírito tanto a sentença de absolvição como a de condenação.

Também nós reclamamos o direito comum, isto é, que não sejamos odiados e castigados por termos o nome de cris­ tãos. Definitivamente, o que o nome tem a ver com a maldade? Reclamamos que cada um seja julgado por aquilo de que foi acusado, e nos absolvam, se desfizermos as acusações, ou nos castiguem se somos réus de maldade. Que não sejamos julgados pelo nome, mas pelo crime, pois nenhum cristão é mau, a não ser que professe fingidamente o cristianismo. Assim vemos que se procede com os filósofos. Nenhum deles, antes do julgamento, pelo simples fato de sua ciência ou profissão, é considerado pelo juíz como bom ou mau; pelo contrário, se é julgado injusto, é castigado, sem que por isso se faça qualquer acusação à filosofia, pois o mau é aquele que não a professa como é de lei; mas a ciência não tem culpa; e se ele se defende das acusações, então é absolvido. Proceda-se de modo igual conosco. Examine-se a vida dos que são acusados e deixese o nome livre de qualquer acusação.

Parece-me necessário, ó máximos imperadores, rogar-vos que, ao começar a defesa da nossa doutrina, vos mostreis ouvintes equânimes e não vos deixeis levar por algum preconceito, arrastados pelos rumores vulgares e irracionais, mas que também apliqueis à nossa doutrina o vosso amor ao saber e à verdade. Desse modo não pecareis por ignorância, e nós, livres das estúpidas intrigas do vulgo, deixaremos de ser combatidos.

3. São três as acusações que se propagam contra nós: o ateísmo, os convites de Tiestes, e as uniões edípicas. Se isso é verdade, não perdoeis a classe alguma. Castigai esses crimes, matai-nos pela raiz com nossas mulheres e filhos, se é que existe entre os homens alguém que viva como ós animais. Até os animais não atacam os de sua espécie, unem-se entre si por lei de natureza, e apenas no tempo da procriação, e não por dissolução e, finalmente, conhecem quem lhes faz benefício. Se alguém, portanto, é mais feroz do que as próprias feras, que castigo corresponderá a tantos crimes? Mas se isso é pura intriga e calúnias vazias, é de razão natural que a maldade se oponha à virtude e de lei divina que os contrários lutem entre si, e vós sois testemunhas de que nós não cometemos nenhum desses crimes, mandando que não confessássemos, a vós cabe agora fazer uma investigação sobre a nossa vida e doutrinas, sobre a nossa lealdade e obediência à vossa casa e império e, por fim, conceder-nos o mesmo que àqueles que nos perseguem. Nós os venceremos, pois estamos dispostos a dar intrepidamente até as nossas vidas pela verdade.

I PARTE: REFUTAÇÃO DAS ACUSAÇÕES DE ATEÍSMO E AFIRMAÇÃO DO MONOTEÍSMO

4. Refutarei agora cada uma das acusações. Que não sejamos ateus, temo até chegar ao ridículo deter-me para contestar àqueles que dizem tal coisa. Diágoras sim, era com razão reprovado pelos atenienses por causa do seu ateísmo. Com efeito, ele não só expunha publicamente a doutrina órfica e divulgava os mistérios de Elêusis e os dos Cabiros, e quebrava a estátua de Herácles para com os pedaços cozer os seus nabos, mas também diretamente afirmava que Deus não existe em absoluto. Nós, porém, distinguimos Deus da matéria e demonstramos que uma coisa é Deus e outra a matéria, e que a diferença entre um e outro é imensa, pois a divindade é incriada e eterna, contemplável apenas pela inteligência e pela razão, mas a matéria é criada e corruptível. Não é irracional chamar-nos de ateus? Com efeito, se pensássemos como Diágoras, tendo tantos argumentos para a crença em Deus - a ordem, a harmonia universal, a grandeza, a cor, a figura, a disposição do mundo -, então sim teríamos com razão a fama de ím-pios e haveria motivo para sermos perseguidos. Mas a nossa doutrina admite um só Deus, criador de todo este mundo, e ele não foi criado - pois não se cria o que existe, mas o que não existe -, e sim ele é criador de todas as coisas por meio do Verbo que dele procede. Portanto, sofremos ambas as coisas sem motivo, a má fama e a perseguição.

5. A ninguém pareceu que os poetas e filósofos eram ateus, porque especularam sobre Deus. Assim Eurípides, duvidando completamente sobre aqueles que a preocupação comum chama falsamente de deuses, disse: "Se é que Zeus está no céu, não deveria torná-lo desgraçado". Mas, dando a sua opinião sobre aquele que é cognoscível por ciência, diz: "Vês na altura este éter imenso e que mantém a terra ao redor em seus braços úmidos? Crê que este é Zeus; tem a este como Deus".

Com efeito, não via daqueles nem as essências que subsistiriam sob o nome que se lhes atribui - "Porque Zeus, seja Zeus quem for, dele sei apenas o nome" - nem que os nomes fossem atribuídos a coisas subsistentes. Ora, onde não há essências subsistentes, que valor têm os nomes? Este, porém, era visto pelas obras, entendendo que o aparente é manifestação do oculto. Assim, portanto, aquele cujas obras via e cujo espírito segura as rédeas de tudo, esse ele compreendeu como Deus. E com ele concorda Sófocles: "Um, em verdade, um só é Deus, que fabricou o céu e a vasta terra". Com isso ele ensina sobre a natureza de Deus, que enche o universo com a sua beleza, e não só onde deve estar Deus, mas também que deve ser necessariamente uno.

6. Também Filolao, ao afirmar que Deus fechou tudo como em uma prisão, demonstra que Deus é uno e que está acima da matéria. Quanto a Lisis e Opsimo, um defende a Deus como o número inefável, o outro como a diferença entre o número máximo e seu contíguo. Ora, conforme os pitagóricos, o número máximo é o dez, pois é tetractys ou quaternário e compreende todas as proporções aritméticas e harmônicas, e o contíguo a este é o nove. Portanto, Deus é a mônada, isto é, uno, pois supera por um o maior em relação ao seu contíguo inferior.

Platão e Aristóteles - aviso, antes de tudo, que não tenho a intenção de expor com absoluto rigor as doutrinas dos filósofos, ao citar o que disseram a respeito de Deus; com efeito, sei o quanto superais a todos por vossa inteli gência e o poder de vosso império, também sais versados em cada uma das partes da ciência, como não o são nem os que se reservaram uma só delas; todavia, como, sem citar nomes, era impossível demonstrar que não somos apenas nós que encerramos Deus na mônada, recorri aos florilégios ou coleções de sentenças. Platão, portanto, diz o seguinte: "Ao Criador e Pai de todo o universo não só é difícil encontrá-lo, mas, uma vez encontrado, é difícil manifestá-lo a todos", dando a entender que o Deus incriado e eterno é um. É certo que ele conhece outros, como o sol, a lua e as estrelas, mas conhece-os como seres criados: deuses de deuses, de que eu sou o artífice, e pai de obras que, se eu não quiser, não são desatáveis, pois tudo o que é atado é desatável". Portanto, se Platão não é ateu, por entender que o artífice do universo é um só Deus incriado, muito menos o somos nós, por saber e afirmar o Deus, por cujo Verbo tudo foi fabricado e por cujo Espírito tudo é mantido. Aristóteles e sua escola, que introduzem um só Deus como uma espécie de animal composto, dizem que Deus é composto de alma e corpo e consideram como seu corpo o éter, as estrelas errantes e a esfera das estrelas fixas, tudo movido circularmente; e consideram a alma como a inteligência que dirige o movimento do corpo, sem que ela própria se mova, sendo ela, em troca, a causa do movimento. Quanto aos estóicos, embora nos nomes multipliquem o divino nas denominações que lhe dão, conforme as mudanças da matéria, na realidade conside ram Deus como uno. Com efeito, se Deus é o fogo artificio so, que marcha por um caminho para a geração do mundo e compreende em si todas as razões seminais, segundo as quais tudo se produz conforme o destino, e se o espírito de Deus penetra o mundo inteiro, Deus é uno, segundo eles; e chama-se Zeus, se olha o fervor da matéria; ou Hera, se o ar; e daí por diante, conforme cada parte de matéria, por onde penetra abrir para o §

7. De qualquer forma, tratando dos princípios do universo, todos geralmente, até contra a sua vontade, estão de acordo em que o divino é uno, e nós afirmamos que quem ordenou todo o universo, esse é Deus. Portanto, qual é o motivo pelo qual se permite que uns possam dizer e escrever livremente sobre Deus, conforme queiram, e, por outro lado, haja uma lei estabelecida contra nós, justamente nós, que podemos estabelecer por sinais e razões de verdade o que entendemos e retamente cremos, isto é, que Deus é uno? Com efeito, os poetas e filósofos, aqui como em outros lugares, procederam por conjecturas, movidos conforme a simpatia do sopro de Deus, cada um por sua própria alma, a buscar se era possível encontrar e compreender a verdade. E só conseguiram entender, mas não encontrar o ser, pois não se dignaram aprender de Deus sobre Deus, mas cada um de si mesmo. Então, cada um dogmatizou a seu modo, não só a respeito de Deus, mas sobre a matéria, as formas e o mundo. Nós, porém, sobre o que entendemos e cremos, temos como testemunhas os profetas que, movidos pelo Espírito divino, falaram sobre Deus e as coisas de Deus. Ora, vós mesmos, que por vossa inteligência e vossa pie-dade em relação ao verdadeiramente divino ultrapassais a todos, direis que é irracional aderir a opiniões humanas, abandonando a fé no Espírito de Deus, que moveu, como seus instrumentos, as bocas dos profetas.

Demonstração racional do monoteísmo

8. Que o Deus Criador de todo este universo seja um só desde o princípio, considerai-o do seguinte modo, a fim de que tenhais também o arrazoado da nossa fé: Se, desde o princípio, tivesse havido dois ou mais deuses, certamente os dois teriam tido que estar em um só e mesmo lugar ou cada um, à parte, em seu lugar. Ora, é impossível que estivessem em um só e mesmo lugar, porque, sendo deuses, não seriam iguais, mas, como incriados, seriam desiguais. De fato, o criado é semelhante a seus modelos, mas o incriado não é semelhante a nada, pois não foi feito por ninguém, nem para ninguém. Se Deus é um só, como a mão, o olho e o pé são partes completivas de um só corpo, visto que delas se completa um só; Sócrates, sim, enquanto criado e corruptível, é composto e dividido em partes. Deus, porém, é incriado, impassível e indivisível. Portanto, não é composto de partes. Contudo, se cada um deles ocupa seu próprio lugar, sendo aquele que criou o mundo mais alto que todas as coisas e estando acima do que ele fez e ordenou, onde estará o outro ou os outros? Com efeito, se o mundo, que tem forma esférica perfeita, é limitado pelos círculos do céu, o Criador desse mesmo mundo está acima de tudo o que foi criado, conservando tudo com a sua providência, que lugar resta para o outro ou outros deuses? Porque não está no mundo, já que pertence a outro; nem em torno do mundo, pois o Deus Criador do mundo está acima deste. E se não está no mundo, nem em torno do mundo (porque tudo o que rodeia este é mantido pelo Criador), onde está? Acima do mundo e de Deus, em outro mundo e em torno a outro mundo? Mas se está noutro e em torno de outro, já não está em torno de nós (pois não tem poder sobre este mundo), nem é grande em si mesmo, pois está em lugar limitado. E se não está em outro mundo, porque tudo é repleto pelo criador do mundo, nem em torno a outro, porque tudo é mantido por este, então, definitivamente, não existe, pois não existe lugar onde esteja. O que é que faz, tendo outro de quem é o mundo e estando ele acima do Criador do mundo, mas não estando nem no mundo, nem ao redor do mundo? Existe, porém, um ponto de apoio em que se apóie aquele que foi feito contra aquele que é? Acima dele, porém, está Deus e as obras de Deus. E qual será o lugar, visto que o Criador preenche o que está acima do mundo? Têm providência? Não! Não tem providência também, porque não fez nada. Por fim, se nada faz, não tem providência, nem outro lugar onde esteja, existe, desde o princípio, um único e só: o Deus Criador do mundo.

9. Se nos contentássemos com esses argumentos de razão, poder-se-ia pensar que a nossa doutrina é humana. Entretanto, nossos arrazoados são confirmados pelas palavras dos profetas. Penso que vós, que sois amicíssimos do saber e instruidíssimos, não desconheceis os escritos de Moisés, nem de Isaías, Jeremias e outros profetas que, saindo de seus próprios pensamentos, por moção do Espírito divino, falaram o que neles se realizava, pois o Espírito se servia deles como flautista que sopra a flauta. Que dizem os profetas? "O Senhor é nosso Deus; não será contado nenhum outro com ele". E ainda: "Eu sou Deus antes e depois, além de mim não há Deus." Igualmente: "Antes de mim não existiu outro Deus, e depois de mim não existirá. Eu sou Deus e não outro além de mim." E a respeito de sua grandeza: "O céu é o meu trono e a terra é o escabelo de meus pés. Que casa me edificarás, ou qual é o lugar do meu descanso?" Deixo para vós, inclinados sobre os livros deles, examinar mais suas profecias, a fim de que, através de um raciocínio conveniente, recuseis a calúnia contra nós.

Afirmação da fé monoteísta e trinitária

10. Desse modo, fica suficientemente demonstrado que não somos ateus, pois admitimos um só Deus, incriado, eterno, e invisível, impassível, incompreensível e imenso, compreensível à razão só pela inteligência, rodeado de luz, beleza, espírito e poder inenarrável, pelo qual tudo foi feito através do Verbo que dele vem, e pelo qual tudo foi ordenado e se conserva. De fato, dele vem, e pelo qual tudo foi ordenado e se conserva. De fato, reconhecemos também um Filho de Deus. E que ninguém considere ridículo que, para mim, Deus tenha um Filho. Com efeito, nós não pensamos sobre Deus, e também Pai, e sobre seu Filho como fantasiam vossos poetas, mostrando-nos deuses que não são em nada melhores do que os homens, mas que o Filho de Deus é o Verbo do Pai em idéia e operação, pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do espírito, o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. Se, por causa da eminência de vossa inteligência, vos ocorre perguntar o que quer dizer "filho", eu o direi livremente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação. E o Espírito profético concorda, com o nosso raciocínio, dizendo: "O Senhor me criou como princípio de seus caminhos para suas obras". Com efeito, dizemos que o mesmo Espírito Santo, que opera nos que falam profeticamente, é uma emanação de Deus, emanando e voltando como um raio de sol. Portanto, quem não se surpreenderá ao ouvir chamar de ateus indivíduos que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo, que mostram seu poder na unidade e sua distinção na ordem1 ? E a nossa doutrina teológica não pára aqui, mas dizemos que existe uma multidão de anjos e ministros, aos quais Deus Criador e Artífice do mundo, por meio do Verbo que dele procede, distribuiu e ordenou, para que estivessem em torno dos elementos, dos céus, do mundo, do que há no mundo, e cuidassem de sua boa ordem.

11. Não vos maravilheis de que eu exponha tão detalhadamente nossa doutrina, pois todo o meu afã de exatidão se orienta a que não vos deixeis arrastar pela opinião vulgar e irracional, mas que tenhais o meio de conhecer a verdade. E assim que, pelos mesmos preceitos aos quais aderimos e que não são humanos, mas ditos por Deus e por Deus ensinados, podemos persuadir-vos de que não somos ateus. Quais são essas doutrinas com as quais nos nutrimos? "Eu vos digo: amai os vossos inimigos, bendizei aqueles que vos amaldiçoam, orai pelos que vos perseguem, para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus, que faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos". Permiti-me aqui, pois este discurso foi ouvido com grandes aplausos, que prossiga com confiança, como quem pronuncia a sua defesa diante de imperadores filósofos. Com efeito, quem, dentre os que analisam os silogismos, solucionam os equívocos, esclarecem as etimologias, ou que ensinam os homônimos e sinônimos, os categoremas, os axiomas, o que é o sujeito e o que é predicado; quais desses prometem fazer felizes os seus discípulos por essas ou semelhantes doutrinas? Quais desses têm almas tão purificadas que amem os seus inimigos ao invés de odiá-los, e abençoem a quem primeiro os amaldiçoou - coisa naturalíssima -, e roguem contra aqueles que atentam contra a sua própria vida? Ao contrário, eles passam a vida aprofundando com má intenção seus próprios mistérios, estão sempre desejando fazer algum mal, pois professam não uma demonstração de obras, mas uma arte de palavras. Entre nós, porém, é fácil falar a pessoas simples, artesãos e velhinhas que, se não são capazes de manifestar a utilidade da sua religião, a demonstram pela prática. Com efeito, não aprendem discursos de cor, e sim manifestam boas ações: não ferir a quem os fere, não perseguir na justiça a quem os despoja, dar a todo aquele que lhes pede e amar ao próximo como a si mesmos.

12. Ora, se não acreditássemos que Deus preside ao gênero humano, poderíamos levar uma vida tão pura? Não é possível dizer. Mas como estamos persuadidos de que teremos de dar contas de toda a nossa vida presente a Deus, que fez a nós e ao mundo, escolhemos a vida moderada, caritativa e desprezada, pois pensamos que não podemos sofrer mal tão grande aqui, mesmo quando nos tirem a vida e qual será a recompensa que receberemos lá do grande juiz por uma vida mansa, caritativa e modesta. Platão disse que Minos e Radamante julgariam e castigariam os maus. Nós, porém, dizemos que nem o próprio Minos ou Radamante ou o pai deles escapará do julgamento de Deus. Além disso, homens que consideram essa vida como "comamos e bebamos, porque amanhã morreremos" e fazem da morte um sono profundo e puro esquecimento - "a morte e o sono, irmãos gêmeos" - são considerados piedosos. Nós, porém, homens que consideramos a vida presente de curta duração e de mínima estima, que nos dirigimos pelo único desejo de conhecer o Deus verdadeiro e o Verbo que dele procede - qual é a comunicação do Pai com o Filho, que coisa é o Espírito, qual é a união de tão grandes realidades, qual a distinção dos assim unidos, do Espírito, do Filho e do Pai-;nós que sabemos que a vida que esperamos é superior a tudo quanto a palavra pode expressar, se chegarmos até ela puros de toda iniqüidade; nós que vivemos a nossa caridade até amar não só os nossos amigos, como diz a Escritura: "Se amais os que vos amam e emprestais aos que vos emprestam, que recompensa tereis?", a nós que somos tais e vivemos tal vida para fugirmos de ser julgados, não somos considerados religiosos?

Tudo isso são pequenas amostras de grandes coisas, poucas entre muitas, a fim de não vos molestarmos com a prolixidade. Com efeito, os que provam o mel ou o soro, através de uma pequena quantia, examinam se o todo é bom.

13. Contudo, já que aqueles que nos acusam de ateísmo - vulgo que não sabe sequer em sonho que é Deus, tão ignorantes e alheios que são à contemplação tanto da razão teológica como da física, que medem a religião por lei de sacrifícios - nos reprovam por não termos os mesmos deuses que as cidades, considerai, vos peço, ó imperadores, um e outro ponto do modo que segue, e, antes de tudo, a reprovação por não sacrificar. O Artífice e Pai deste universo não tem necessidade nem de sangue nem de gordura, nem de perfume de flores e incensos, já que ele é o perfume perfeito; nada lhe falta, e de nada necessita. Para ele o máximo sacrifício é que reconheçamos quem estendeu e deu força esférica aos céus e assentou a terra como centro, que reuniu as águas em mares e separou a luz das trevas, quem adornou o éter com astros e fez que a terra produzisse sementes, quem criou os animais e plasmou o homem. Considerando, pois, Deus como artífice que contém tudo e que olha tudo com a ciência e a arte com que dirige tudo, e levantando as nossas mãos puras para ele, que necessidade há de catástrofes?

"Os homens tratam de dobrá-los com sacrifícios e suaves súplicas, com libação e gordura, suplicando-lhes quando alguém comete transgressão e pecado". Que falta me fazem os holocaustos de que Deus não necessita? E que falta me faz apresentar oferendas, quando se deve ofere cer-lhe sacrifícios incruentos, que é culto racional?

14. Sobre o fato de não nos aproximarmos ou termos como deuses os mesmos que as cidades têm, é palavra totalmente idiota; mas nem aqueles que nos acusam de ateísmo por não considerarmos como deuses aqueles aos quais de modo vão se aproximam, concordam entre si a respeito dos deuses. Os atenienses estabelecem como deuses Celeu e Metanira; os lacedemônios estabelecem Menelau, e a ele sacrificam e celebram festas; os troianos, que não podem sequer ouvir seu nome, estabelecem Heitor; os habitantes de Queos estabelecem Aristeu, que identificam com Zeus e Apolo; os tássios estabelecem Teágenes, que cometeu homicídio nos jogos olímpicos; os habitantes de Samos estabelecem Lisandro, depois de tantas mortes e tantos males; os cilícios consideram Medéia e Níobe; os sículos consideram Filipe, filho de Butacides; os amatúsios consideram Onesilau; os cartagineses consideram Amílcar. O dia acabaria se eu tivesse que enumerar toda a multidão. Se eles entre si não estão de acordo sobre seus próprios deuses, por que nos acusam de não coincidir com eles? Quanto aos egípcios, a coisa chega ao ridículo. Em suas grandes reuniões, eles batem no peito nos templos, como pelos mortos, e lhes oferecem sacrifícios como a deuses; e ninguém estranha que introduzam animais como deuses, raspem a cabeça quando morrem, os enterrem nos templos e organizem lutos públicos. Se nós, portanto, por não praticar a religião como eles, somos ímpios, todas as cidades e todas as nações são ímpias, pois não são todos que têm os mesmos deuses.

15. Aceitemos, porém, que todos admitissem os mesmos deuses. E daí? Se o vulgo, incapaz de distinguir entre matéria e Deus, e de compreender a diferença que existe de uma para outro, recorre aos ídolos feitos de matéria, deveremos também nós adorar as estátuas para agradá-los? Nós, que distinguimos e separamos o incriado do criado, o ser do não-ser, o inteligível do sensível, e que damos nome conveniente a cada uma dessas coisas? Com efeito, se a matéria e Deus são a mesma coisa, e se trata apenas de dois nomes para a mesma realidade, não aceitando como deuses as pedras, a madeira, o ouro e a prata, cometemos uma impiedade; contudo, se existe imensa distância entre um e outro, como do artista para os instrumentos de sua arte, por que nos acusam? Como o oleiro e o barro, o barro é a matéria e o oleiro é o artista, assim Deus é o artífice, e a matéria lhe obedece em vista da arte. Mas como o barro sem a ação do artista não pode por si mesmo converter-se em vasos, também a matéria, capaz de qualquer forma, não teria recebido em distinção nem figura nem ornato sem a ação do Deus artífice. Ora, nós não consideramos o vaso mais digno de honra do que o seu fabricante, nem as taças de ouro mais dignas de honra do que aquele que as fundiu, mas, se vemos nelas alguma habilidade artística, louvamos o artista e é este que colhe o fruto da glória dos vasos. Do mesmo modo, tratando-se de Deus e da matéria, não é esta que recebe a glória e a justa honra pela ordenação do mundo, mas Deus, artífice da matéria. Assim, se considerássemos como deuses as formas da matéria, daríamos prova de não ter o sentido do Deus verdadeiro, equiparando o dissolúvel e corruptível ao eterno.

16. Certamente o mundo é belo, abarca tudo com a sua grandeza, pela disposição dos astros da ecléptica e os do setentrião, e por sua forma esférica; contudo, não é a ele, mas ao seu artífice que se deve adorar. Com efeito, nem mesmo vossos súditos que recorrem a vós, seus donos e senhores, dos quais podem conseguir o que necessitam, vos deixam de honrar para deter-se na magnificência de vossa moradia; de passagem, eles olham vosso palácio imperial e admiram sua bela feitura; contudo, a glória e a honra eles as tributam inteiramente a vós. E de se notar que vós, os reis, construís para vós mesmos vossas régias moradas; o mundo, porém, não foi feito porque Deus necessitasse dele, pois Deus é tudo para si mesmo, luz inacessível, mundo perfeito, espírito, poder, verbo. Portanto, se o mundo é um instrumento harmonioso que se move conforme um ritmo, eu não adoro o instrumento, mas a quem lhe dá harmonia, o faz emitir os sons e entoa o canto afinado. Nem mesmo nos jogos públicos os atletas deixam de lado os tocadores de cítaras e coroam as cítaras deles. Se o mundo é, como diz Platão, uma obra de Deus, admirando sua beleza, eu me dirijo ao artista. Se é essência e corpo, como querem os peripatéticos, não vamos deixar de adorar a Deus, causa do movimento desse corpo, para cair nos elementos míseros e fracos, preferindo em nossas adorações a matéria passível ao éter que, segundo eles, é impassível. E se existe quem entende as partes do mundo como potências de Deus, não vamos prestar honras às potências, mas ao criador e dono delas. Não peço à matéria o que ela não tem, nem abandono a Deus para servir aos elementos, que podem apenas aquilo que lhes é ordenado. Se é certo que são formosas à vista por perícia do artífice, nem por isso deixam de ser perecíveis por natureza da matéria. O próprio Platão confirma meu raciocínio. Ele diz: "O que chamamos céu e mundo, embora participe de muitos e afortunados bens da parte do Pai, contudo, também tem a comunicação do corpo e, por isso, é impossível que esteja isento de toda mudança". Se, embora admirando o céu e os elementos por causa da arte que neles resplandece, não os adoro como a deuses, pois conheço a razão de dissolução que pesa sobre eles, como chamarei deuses aos que eu sei que têm homens como artífices?

17. Peço-vos considereis brevemente este ponto2. (E preciso que fazendo a nossa defesa, como estou, eu apresenteargumentos mais precisos, tanto sobre os nomes, para demonstrar que são recentes, como sobre as imagens, para ver que procedem, como se diz, de ontem e anteontem; e isso vós o sabeis melhor do que ninguém, pois sois versados nos antigos a respeito de todo assunto e em grau superior a todos). Portanto, digo que Orfeu, Homero e Hesíodo são os que estabeleceramas famílias e deram os nomes aos que por eles são chamados deuses. O próprio Heródoto o confirma: "Considero Hesíodo e Homero quatrocentos anos mais antigos do que eu, não mais, e foram eles que estabeleceram a Teogonia para os gregos, que deram suas denominações aos deuses, distribuindo suas honras e ofícios e explicando suas formas." Quanto às suas imagens, enquanto não existiam a pintura, a plástica e a escultura, não eram sequer concebíveis. Foi na época de Sáurio de Samos, de Cráton de Sicião, de Cleantes de Corinto e de uma moça coríntia que foi inventada a representação das figuras, quando Sáurio delineou um cavalo ao sol; a pintura foi quando Cráton recobriu de cor, em uma tábua branca, as figuras de um homem e de uma mulher. A fabricação de bonecos foi inventada pela moça: enamorada por um homem, delineou, enquanto dormia, a figura dele na parede; depois, o seu pai, satisfeito com a exata semelhança (sabe-se que ele trabalhava com argila), a esculpiu, enchendo o contorno de barro. A imagem ainda é conservada em Corinto. A esses sucederam Dédalo, Teodoro e Smilis, que inventaram a escultura e a plástica. Na verdade, as imagens e fabricação dos ídolos têm tão pouco tempo que é possível indicar o artífice de cada deus. Assim, foi Endoio, discípulo de Dédalo, que fabricou a estátua de Ártemis em Éfeso, a de Atenas (ou melhor, de Atela, pois assim a chamam os que falam misteriosamente... falo, portanto, da antiga estátua de oliveira), e até da Sentada; Apolo Pítio é obra de Teodoro e de Télecles; Délio e Ártemis são arte de Tecteu e de Angelião; a Hera de Argos e a de Samos saíram das mãos de Smilis; os demais ídolos são de Fídias; a segunda Afrodite é obra de Praxíteles; o Asclépio de Epidauro é obra de Fídias. Numa palavra, nenhum dos ídolos pode escapar de ser fabricado por homens. Ora, se são deuses, como não existiam desde o princípio? Como são mais recentes que aqueles que os fabricaram? Que necessidade tinham, para nascer, dos homens e da arte? Tudo isso, porém, é apenas terra, pedras, matéria e arte supérflua.

18. Há aqueles que dizem que isso são apenas estátuas, mas é aos deuses que elas se referem, que as procissões que a elas se fazem e os sacrifícios que se lhes oferecem terminam nos deuses e a eles se dirigem, que não existe, enfim, outro meio de aproximar-se dos deuses sem este: "os deuses são difíceis de aparecer claramente". E que isso seja assim, apresentam como prova as atividades de alguns ídolos. Se vos agrada, examinemos o poder que existe em seus nomes. Antes de iniciar o meu discurso, eu vos rogo, ó máximos imperadores, que me perdoeis se apresento apenas raciocínios verdadeiros. O meu propósito não é refutar os ídolos, e sim desfazer as calúnias contra nós e oferecer-vos a razão de nossa religião. Ora, vós, por vós mesmos, poderíeis examinar o império celeste. Com efeito, como a vós, pai e filho, vos foi posto tudo na mão ao receber o império de cima: "Porque a alma do rei está nas mãos de Deus", diz o Espírito profético, do mesmo modo está submetido a um só Deus e ao Verbo que dele procede seu filho concebido como seu inseparável. Antes de tudo, eu vos peço, portanto, que considereis este ponto. Os deuses não existiram, conforme dizem, desde um princípio, mas cada um deles nasceu do mesmo modo que nascemos. Nisso todos concordam, pois Homero diz: "Ao Oceano, origem dos deuses, e à mãe Tétis".

Orfeu, que foi o primeiro a inventar os seus nomes e explicou suas genealogias, que contou as façanhas de cada um, e que se acredita entre o vulgo ser o mais veraz teólogo, a quem geralmente Homero segue mais do que ninguém em assunto de deuses, Orfeu, como dizia, também estabelece a primeira origem deles na água: "O Oceano, que é a origem de todos." Com efeito, segundo ele, a água foi o princípio de tudo e da água formou-se um lodo e de ambos foi gerado um animal, um dragão que tinha unidas uma cabeça de leão e outra de touro, e entre as duas, um rosto de deus, cujo nome é Héracles e Crono. Héracles gerou um enorme ovo que, cheio da força daquele que o havia gerado, rompeu-se em dois por atrito. A parte superior transformou-se no Céu, a debaixo na Terra, e surgiu um deus de duplo corpo. O Céu, unido com a Terra, gerou as mulheres Cloto, Láquesis e Atropo, os homens centímanos: Coto, Giges, Briareu, e os ciclopes Brontes, Estetopes e Arges. Mas como ficou sabendo que seria derrubado de seu império por seus próprios filhos, acorrentou-os e atirou-os na profundeza do Tártaro. Irritada com isso, a Terra gerou os titãs: "A augusta Gaia gerou os filhos de Urano que chamam pelo sobrenome de titãs, pois eles se vingaram do grande Urano estrelado".

19. Tal é o princípio da gênese, não só daqueles que eles consideram deuses, mas do universo todo. Considerai, portanto, este ponto: cada um desses aos quais se atribui a divindade, como princípio, também é forçoso que seja corruptível. De fato, se nasceram não existindo, como dizem os que teologizam sobre eles, não existem, porque uma coisa ou é incriada e, por conclusão, eterna, ou é criada e, por conseguinte, corruptível. Não falo diferentemente dos filósofos: "O que é que é sempre e não tem princípio? O que é que começa e não é nunca? Platão, discorrendo sobre o inteligível e o sensível, ensina que aquilo que é sempre, o inteligível, é o incriado; e aquilo que não é, o sensível, criado, que começa a ser e deixa de ser. Por isso, também os estóicos dizem que tudo há de perecer numa conflagração, e voltar a ser de novo, readquirindo princípio. Ora, se, conforme eles, existem duas causas, a eficiente, que é aquela que manda, como a providência, e a passiva, que é aquela que muda, como matéria, e é impossível que, mesmo governado pela providência, o mundo permaneça em um ser, desde o momento que tem princípio, como permanecerá a constituição desses que não existem por natureza, mas que nascem? Em que são superiores à matéria deuses que têm a sua constituição a partir da água? Mas nem mesmo a água, segundo eles, é princípio de tudo. (Com efeito, o que é que poderia constituir-se de elementos simples e uniformes? Além disso, a matéria sempre necessita de artífices e o artífice necessita da matéria. De fato, como poderiam ser feitas as imagens sem matéria ou sem artífice?) Não há razão alguma para que a matéria seja mais antiga do que Deus, pois é forçoso que a causa eficiente seja anterior ao que tem princípio.

20. Ora, se o absurdo de sua teologia ficasse na afirmação de que os deuses nascem e se constituem da água, uma vez que demonstrei que não existe nada criado que não seja também dissolúvel, poderia passar às outras acusações que nos fazem; de uma parte, porém, descreveram os corpos dos deuses: um Héracles, o qual dizem que era um dragão retorcido; os deuses de cem mãos; a filha de Zeus, que ele teve com sua mãe Rea, também chamada Deméter, que tinha dois olhos no lugar natural e outros dois na fronte, além de chifres e a face de animal na parte posterior do pescoço, com o que, espantada com aquele monstro de filha, Rea fugiu sem dar-lhe o peito. É daí que misticamente se chama Atela, ao passo que comumente se lhe dá o nome de Perséfone e Coré, que não é a mesma que Atenas, à qual também se chama Core, por causa de sua virgindade. Por outro lado, também nos contaram suas façanhas exatamente conforme eles pensam: Cronos, que cortou o membro viril de seu pai e ele próprio o atirou de seu carro, e que matava seus filhos, devorando os varões. Zeus, que amarrou seu pai e o atirou na profundeza do Tártaro, como já fizera Urano com seus filhos, que lutou contra os titãs pela supremacia e perseguiu sua mãe Rea, que recusava unir-se com ele, convertendo-se ela em dragão, ele também em dragão e, amarrando-o com o chamado nó de Héracles, finalmente uniu-se com ela (o símbolo da figura da união é o bastão de Hermes). Depois Urano também se uniu com sua filha Perséfone, forçandoa sob a forma de dragão, e dela nasceu o filho Dioniso. Tudo isso me força a dizer o seguinte: o que há de importante ou de útil nessa história, para que acreditemos que Cronos, Zeus, Coré e os outros sejam deuses? As configurações de seus corpos? Contudo, que homem discreto e formado na contemplação filosófica pode acreditar que um deus tenha gerado uma víbora? Assim diz Orfeu: "Fanes, porém, espantosa à vista; de sua cabeça pendem os cabelos e o seu rosto é belo de se ver, mas nas partes restantes ela é dragão espantoso desde a altura do pescoço..."

Quem poderá admitir que o próprio Fanes, que é o deus primogênito (pois este é o que saiu do ovo derramado), tenha corpo ou figura de dragão ou que tenha sido devorado por Zeus, a fim de que este se tornasse imenso? Com efeito, se em nada se diferenciam dos mais vis animais (e é evidente que a divindade deve diferenciar-se de todo terreno e até daquilo que é separado da matéria), não são deuses. Por que aos que nascem com forma semelhante à dos animais, têm forma de animais e aspecto horrível?

21. Na verdade, se dissessem apenas que seus deuses são carnais, que têm sangue, esperma, paixões de ira e desejo, já seria o bastante para qualificar todos esses relatos de charlatanice e coisa ridícula; de fato, em Deus não há ira, desejo, instinto ou sêmen gerador. Podem ser de carne, mas superiores ao fastio e à colera, e não vejamos Atenas "irritada contra Zeus Pai, pois uma cólera feroz a arrebatara", e não contemplemos Hera, a quem "a cólera não lhe cabia no peito e disse"; também superiores à tristeza: "Que dor! Estou vendo com meus olhos o homem verdadeiramente querido perseguido em torno da muralha, e meu coração se entristece". De minha parte, considero como homens deseducados e torpes aqueles que cedem à cólera e à tristeza. Com efeito, quando o "pai de homens e deuses" se lamenta por seu filho: "Ai de mim! Pois Sarpedon, o mais querido dos homens, foi decretado pelo destino que ele seja domado por Pátroclo, filho de Menécio" e, com todos os seus lamentos, é incapaz de livrá-lo do perigo: "Sarpedon, filho de Zeus, e este nem a seu filho socorre".

Quem não chamará de ignorantes aqueles que se mostram amadores dos deuses com tais fábulas, quando, na realidade, são ateus? Podem ser carnais, mas que Afrodite não seja ferida nem no corpo por Diomedes: "Feriu-me o filho de Tideu, o soberbo Diomedes", nem por Ares na alma: "Por ser coxo, Afrodite, a filha de Zeus, sempre me despreza e ama o horrível Hares". Nem Hares pelo próprio Diomedes: "E lhe arrancou a bela pele". Ares, o espantoso nas batalhas e aliado de Zeus contra os titãs, aparece mais fraco que Diomedes: "Ia furioso, como quando Ares brande a sua lança". Cala-te, Homero, pois Deus não se enfurece; tu és aquele que me apresentas Deus como manchado de sangue e funesto para os mortais: "Ares, Ares, destruição de mortais, manchado de sangue", e nos contas o seu adultério e acorrentamento: "Os dois, tendo subido ao leito, adormeceram, mas ao redor deles estenderam-se as hábeis correntes do engenhoso Héfesto, e já não era possível mover os membros".

Como não rejeitar todo esse interminável charlatanismo sobre os deuses? Urano foi castrado, Cronos foi acorrentado e jogado no Tártaro, os titãs se rebelam, Estígia morre no decorrer da batalha (até como mortais nos apresentam os deuses), uns se enamoram pelos outros e também se enamoram pelos homens: "Éneas, que foi concebido pela divina Afrodite nos braços de Asquises, nas quebradas do Ida, uma deusa deitada com um mortal". Os deuses, porém, não amam, nem têm paixões, porque se são deuses não são afetados pelo desejo... E se Deus toma carne, segundo a divina economia, torna-se escravo do desejo?

"Com efeito, jamais o amor de deusa ou de mulher domou o meu coração dentro do peito em torno derramado, nem quando amei a esposa de Ixião; nem quando amei Dânae, a de belos tornozelos, a de Acrísio; nem quando amei a filha do ilustre Fênix, nem quando amei Sêmele ou Alcmena em Tebas, nem quando amei Deméter, a rainha de belas tranças, nem quando amei a gloriosa Seto, nem a ti mesma". Se um ser é criado, ele é corruptível, e nada tem de Deus. E chegam a servir os homens como diaristas: "O palácios de Admeto, em que eu tive que suportar e aceitar a mesa de diarista sendo um deus." Também são boiadeiros: "Vindo eu a esta terra, apascentei os bois de meu hóspede e salvei esta casa". Portanto, Admeto é superior ao deus. Ó adivinho e sábio, que predizes o futuro para os outros! Tu não foste capaz de adivinhar a morte do teu amado, mas com a tua própria mão mataste o teu amigo. E Esquilo censura Apolo como falso adivinho: "Eu acreditava que a boca divina de Febo era infalível, pois dela brota a arte da adivinhação; e ele próprio, que entoava o hino, presente ao convite e que me predissera isso, foi ele que matou o meu filho".

22. Talvez se diga que tudo isso são fantasias poéticas, e que existe uma explicação física para tudo isso. Como diz Empédocles: "Esplêndido Zeus, e Hera que dá a vida, Aidoneu e Néstis, que banha de lágrimas os olhos mortais". Contudo, se Zeus é o fogo, Hera a terra, Aidoneu o ar e Néstis a água, e tudo isso são elementos-fogo, água, ar -, nenhum deles é Deus: nem Zeus, nem Hera, nem Aidoneu, pois a constituição e origem de todos provém da matéria separada por Deus: "Fogo, água e terra, a benigna altura do ar, e a amizade entre eles".

Aquele que não pode permanecer sem a amizade, pois está confundido pela discórdia, quem poderá dizer algo de Deus? Conforme Empédocles, a amizade é o que manda, e os compostos são o mandado, e o que manda é o principal. De modo que, se julgamos ser uma e a mesma a potência do que manda e do mandado, não nos damos conta de estar tributando honra igual à matéria corruptível do ser mutante e a Deus incriado, eterno e sempre concorde consigo mesmo.

Segundo os estóicos, Zeus é a substância fervente; Hera, que é o ar, pois o próprio nome concorda com o som, enlaça-se consigo mesmo; Posêidon é a bebida. Outros dão outras explicações naturais. Com efeito, uns dizem que Zeus é o ar de dupla natureza, hermafrodita; outros dizem que ele é a ocasião que muda o tempo em boa temperatura e que, por isso, foi o único que escapou de Cronos. Contudo, é preciso dizer contra os estóicos: se considerais o Deus dupremo como um só, incriado e eterno, e que são compostas as coisas onde se processa a mudança da matéria, e afirmais que o espírito de Deus, que penetra através da matéria, recebe um ou outro nome conforme sua mudança, então as formas da matéria se converterão em corpo de Deus e, corrompendo-se os elementos pela conflagração, forçosamente também os nomes se corromperão junto com as formas, permanecendo unicamente o espírito de Deus. Entretanto, quem é que considerará como deuses corpos corruptíveis e mutáveis conforme a matéria?

Quanto aos que dizem que Cronos é o tempo e Rea a terra; que esta concebe de Cronos e gera e que, por isso, é chamada mãe de todos; que ele gera e devora; que a mutilação de seus órgãos sexuais é a união do macho e da fêmea que corta e joga o sêmen na matriz e gera o homem que tem dentro o desejo, isto é, Afrodite; que a loucura de Cronos é o giro do tempo, consumindo o animado e o inanimado; que as correntes e o Tártaro são o tempo que muda e se torna invisível pelas estações; contra esses dizemos: se Cronos é o tempo, então muda; se é a estação, gira; se é as trevas, o gelo ou sua substância úmida, nada disso permanece; a divindade, porém, é imortal, imóvel e imutável. Portanto, nem Cronos, nem o ídolo que o representa, é deus. Quanto a Zeus, se ele é o ar gerado de Cronos", cujo elemento masculino é Zeus e o feminino Hera (daí que ela seja sua esposa e irmã), é mutável; se ele é a estação, gira; o divino, porém, não muda, nem decai.

Contudo, para que continuar importunando-vos com novas explicações, se vós sabeis melhor as explicações que deram todos aqueles que sobre isso especularam? O que entenderam sobre os deuses aqueles que, por exemplo, escreveram sobre Atena, dizendo que ela é a inteligência que tudo penetra? Ou sobre Ísis, que chamam de natureza da eternidade, da qual todos nasceram e pela qual todos existem? Ou sobre Osíris, seu irmão, morto por Tifão, perto de Pelúsio, cujos membros ela vai buscar junto com o seu filho Horo e, tendo-os encontrado em um sepulcro,que até hoje se chama tumba de Osíris? Com efeito, resolvendo para cima e para baixo as formas da matéria, o que fazem é desviar-se de Deus, que se contempla pela razão, e divinizar os elementos e suas partes, pondo-lhes diversidade de nomes. Por exemplo: a semeadura de trigo, Osíris (do qual dizem que nos mistérios se clama a Ísis por causa do achado dos membros ou dos frutos: "Encontra mos, nos alegramos"); o fruto da vinha, Dioniso; a própria vinha Sêmele, raio, ao calor do sol. Na verdade, os que explicam alegoricamente os mitos, divinizando os ele mentos, nos dão qualquer coisa, menos explicações do divino, pois não se dão conta de que com aquilo que tentam defender seus deuses, confirmam ainda mais os raciocínios contra eles. O que é que Europa e o touro, o cisne e Leda têm a ver com a terra e o ar, para que nos venham dizer que o abominável tratamento de Zeus para com elas representa a união da terra e do ar? Desviando-se da grandeza de Deus e incapazes de remontar pelo raciocínio, pois não sentem simpatia pelo lugar celeste, se consomem e se afundam nas formas da matéria, divinizam as mudanças dos elementos, tão absurdo como alguém confundir o navio em que viaja com o piloto que o dirige. Mas como o navio nada vale, mesmo com todos os seus apetrechos, se não tem piloto, igualmente de nada vale a ordem dos elementos sem a providência de Deus. De fato, nem o navio navegará por si mesmo, nem os elementos se movimentarão sem um criador.

23. Vós, porém, que superais a todos em inteligência, poderíeis objetar: Então por que alguns ídolos agem, se não existem os deuses em cuja honra erguemos as imagens? Não é verossímil que estátuas inanimadas e imóveis tenham por si mesmas alguma força sem que alguém as mova. Desde já, nós mesmos não negamos que em determinados lugares, cidades e povoados aconteçam algumas operações em nome dos ídolos; entretanto, porque alguns tenham recebido proveito e outros prejuízo, não vamos considerar deuses aqueles que agiram em um ou outro sentido, mas investigamos cuidadosamente o motivo de crerdes que os ídolos têm alguma força e quais são os que agem, usurpando seus nomes. Antes de tudo, porém, já que quais são os que agem nos ídolos e que não são deuses, é preciso trazer como testemunhas também alguns filósofos. Tales, como dizem os que conhecem a fundo suas doutrinas, foi o primeiro que estabeleceu a divisão entre Deus, demônios e heróis. Por Deus, ele entende a mente do mundo; por demônios, as substâncias animadas; por heróis, as almas separadas dos homens, bons as boas, maus as más. Platão, que em outros pontos se mostra reservado, também distingue entre o Deus incriado, os astros fixos ou errantes, criados pelo Incriado, para enfeitar o céu, e os demônios. Ele recusa falar desses demônios, mas quer que se acredite nos que falaram sobre eles: "Falar da multidão de demônios e conhecer as suas origens é tarefa que ultrapassa nossas forças, mas deve-se acreditar nos que falaram anteriormente, já que, como dizem, são descendentes dos próprios deuses, e é de se supor que conheçam exatamente seus ascendentes. Portanto, é impossível não crer nos filhos de Deus, mesmo quando falam sem provas verossímeis ou necessárias, mas, seguindo o costume, deve-se crer neles como em pessoas que nos certificam estar nos contando a história de sua própria família. Dessa forma, seguindo a eles, sirva isso também para nós e digamos que a origem desses deuses é a seguinte: Da terra e do céu nasceram dois filhos: o Oceano e Tétis; desses nasceram Forco, Cronos, Rea e todo o seu séquito; de Cronos e Rea nasceram Zeus e Hera e todos os que sabemos que se dizem seus irmãos, e, por fim, os outros descendentes desses".

Entretanto, Platão, que compreendeu o Deus eterno apenas pela inteligência e razão exeqüível; ele, que explicou os atributos que lhe convêm: seu ser real, sua unidade de natureza, o bem que dele se derrama, que é a verdade; ele, que falou da "primeira potência", e disse: "Em torno do rei de todas as coisas está tudo, por causa dele tudo existe e ele é a causa de tudo"; e da segunda e terceira: "O segundo em torno do segundo, e o terceiro em torno do terceiro"; Platão pode considerar empresa superior às suas forças investigar a verdade sobre os que se dizem ter nascido de coisas sensíveis do céu e da terra? Não se pode dizer tal coisa. A verdade é que, como ele entendia ser impossível os deuses gerarem e conceberem, pois o que nasce tem conseqüentemente fim, mais impossível ainda seria mudar a convicção do vulgo, que aceita os mitos sem exame ou prova. Por esse motivo, disse que estava acima de suas forças conhecer e explicar a gênese da multidão dos demônios, pois não podia compreender, nem explicar como os demônios possam ter nascimento. A outra passagem sua, em que diz: "Zeus, o grande guia no céu, lançase à marcha conduzindo o seu carro, e atrás dele segue o exército dos deuses e demônios", não deve ser entendida de Zeus, o assim chamado filho de Crono, pois com o seu nome quer-se significar o Criador do universo. O próprio Platão deixa isso bem claro. Não tendo outro termo para significar isso, usou o nome popular como pôde, não como nome próprio de Deus, mas por razão de clareza, já que não era possível representar para todos o Deus verdadeiro. Depois acrescentou-lhe o qualificativo de "grande", para diferenciar o celeste do terreno, o incriado do criado, este mais jovem que o céu e a terra e até mais jovem que os cretenses, que o roubaram para que não fosse devorado por seu pai.

24. Que necessidade há de recordar-vos os poetas e examinar também outras opiniões para vós que examinastes toda a doutrina? É suficiente acrescentar apenas uma consideração. Mesmo quando poetas e filósofos não reconheceram que Deus é um só, mas uns pensaram nos deuses como demônios, outros como matéria, outros como tendo sido homens, haveria motivo para perseguir-nos, a nós que, com o nosso raciocínio distinguimos Deus da matéria e as substâncias de um e da outra? De fato, assim como confessamos Deus, o Filho, que é o seu Verbo, e o Espírito Santo, identificados segundo o poder, mas distintos segundo a ordem: o Pai, o Filho e Espírito, porque o Filho é inteligência, Verbo e sabedoria do Pai, e o Espírito, emanação como luz do fogo, também entendemos que existem outras potências que rodeiam a matéria e a penetram, e uma contrária a Deus. Não porque exista algo contrário a Deus, da mesma forma que a discórdia é contrária à amizade, conforme Empédocles, ou a noite contrária ao dia, entre os fenômenos naturais - se alguma coisa se enfrentasse assim com Deus, cessaria completamente de ser, pois a sua substância seria destruída pela potência e força de Deus -; mas porque o Espírito que rodeia a matéria é contrário à sua bondade, atributo que lhe é próprio e que coexiste com ele como o calor com o fogo, sem o qual não pode existir-não que seja parte sua, mas é acompanhamento necessário, identificado e compenetrado, como o vermelho com o fogo e o azul com o céu -; Espésito, dizíamos, criado certamente espírito, por Deus, como foram por ele criados os demais anjos, e ao qual foi confiada a administração da matéria e das formas da matéria. Com efeito, a substância desses anjos foi criada por Deus para providência das coisas por ele ordenadas, de modo que Deus conservaria a providência universal e geral do universo - o domínio e o poder sobre tudo dependeria dele, e ele dirigiria isso sozinho, indeclinavelmente, como um navio, com o timão da sua sabedoria-; mas os anjos por ele ordenados se encarregariam da providência particular. Do mesmo modo, porém, que os homens têm livre-arbítrio podem optar pela virtude e pela maldade - pois se não estivesse em seu poder a maldade e a virtude, não honraríeis os bons nem castigaríeis os maus, quando uns se mostram diligentes e outros desleais naquilo que lhes confiais -, assim tam bém os anjos. Uns, que foram imediatamente criados livres por Deus, permaneceram naquilo que Deus os criara e ordenara; outros se orgulharam tanto de sua natureza, como do império que exerciam, isto é, esse que é príncipe da matéria e das suas formas, e os outros encarregados desse primeiro firmamento-e deveis saber que não afirmamos nada sem testemunhas; expressamos apenas o que foi dito pelos profetas -; estes, por terem caído em desejo pelas virgens e mostrando-se inferiores à carne; aquele, por ter sido negligente e mau na administração que lhe fora confiada. Dos que tiveram relação com virgens nasceram gigantes. Não vos maravilheis, se em parte os poetas também falam dos gigantes, pois a sabedoria humana e a divina distam entre si assim como a verdade dista do verossímil. Uma é celeste e outra é terrena e, segundo o príncipe da matéria, "sabemos dizer muitas mentiras semelhantes à verdade".

25. Portanto, esses anjos caídos do céu, que rondam em torno do ar e da terra, e que já não são capazes de subir ao supraceleste, e as almas dos gigantes são os demônios, que andam errantes ao redor do mundo e produzem movimentos semelhantes; os demônios às substâncias que receberam, os anjos aos desejos que sentiram. Quanto ao príncipe da matéria, como se pode ver pela experiência, ele governa e administra de modo contrário à bondade de Deus: "Muitas vezes, uma preocupação atravessou a minha alma. Se é o acaso, se é demônio que domina o humano, pois contra a esperança, contra a justiça, alguns são arrancados de suas casas, sem Deus, e outros são levados à felicidade." Se o ser feliz ou desgraçado contra a esperança e a justiça deixa mudo Eurípedes, de quem será uma administração das coisas terrenas, diante da qual se pode dizer: "Vendo tudo isso, como diremos que a raça dos deuses existe ou obedeceremos às leis?" Isso também levou Aristóteles a dizer que as partes inferiores do céu não são governadas pela providência, mas a verdade é que a providência eterna de Deus permanece para nós de modo igual: "A terra, queira ou não queira, por força, produzindo erva, engorda os meus rebanhos", e a providência particular chega de fato e não em aparência para os que são dignos, e os outros são providos conforme a constituição comum das coisas, por lei da razão. O que acontece é que os movimentos demoníacos do espírito contrário e suas operações produzem esses impulsos desordenados que vemos arrastar os homens, uns de um modo, outros de outro, alguns individualmente, outros por nações, alguns parcialmente, outros em comum, segundo a razão da matéria e da simpatia com o divino; movimentos do interior, como do exterior, que obrigaram alguns, cujas opiniões não são desprezíveis, a pensar que todo este universo não está organizado com ordem, mas que tudo anda revirado por um acaso irracional. Eles ignoram que, quanto à constituição do universo, não existe nada desordenado, nem descuidado, mas cada parte sua foi feita com razão e, por isso, nenhuma transgride a ordem que lhe foi marcada. Quanto ao homem, se se olha para o seu Criador, também foi feito ordenadamente: a natureza de sua origem, que tem uma só e comum razão; a organização de sua formação, que não pode transgredir a lei que a rege; e o termo de sua vida, que permanece igual e comum para todos, embora, segundo a razão própria de cada um e a ação do príncipe da matéria que o domina e dos demônios que o acompanham, cada um se dirija e se mova de modo diverso, apesar de todos terem em si o raciocínio comum.

26. Aqueles que os arrastam aos ídolos são esses demônios dos quais falamos, os que andam em torno do sangue das vítimas e o lambem; mas os deuses que agradam o vulgo e dão o seu nome às estátuas foram apenas homens, como se pode averiguar pelas histórias que deles tratam. A prova de que são os demônios que usurpam seus nomes está na operação que cada um exerce. De fato, aqueles que cultuam Rea, mutilam o próprio membro viril; outros, os de Ártemis, fazem cortes ou incisões em si mesmos; a de Tauros mata estrangeiros. Deixo de falar sobre os que se torturam com punhais e correias de ossos, e tantas outras espécies de demônios. Não é próprio de Deus incitar a atos contra a natureza: "Quando um demônio quer fazer mal a um homem, primeiro lhe prejudica a inteligência." Deus, porém, que é absolutamente bom, é eternamente benéfico.

Que sejam uns que agem e outros em cuja honra se erguem as estátuas, temos uma prova definitiva em Tróia e Pário. A primeira tem estátuas de Nerilino, contemporâneo nosso; Páris tem estátuas de Alexandre e Proteu. Há ainda na ágora ou praça pública o sepulcro e a estátua de Alexandre. Ora, as outras estátuas de Nerilino servem de ornamento público, se é que com tais coisas se orna uma cidade. Crê-se, porém, que uma delas dá oráculos e realiza curas e, por isso, os troianos lhe oferecem sacrifícios, a ungem e a coroam de ouro. Quanto às estátuas de Alexandre e Proteu (não ignorais que este se atirou ao fogo em Olímpia), diz-se também que uma emite oráculos, e a estátua de Alexandre - "Páris malfadado, brava figura, mulherengo" -também são oferecidos sacrifícios e celebradas festas, como a deus propício. De fato, são Nerilino, Proteu e Alexandre que realizam esses prodígios nas estátuas ou é a constituição da matéria? Mas a matéria é puro bronze. Que é que o bronze pode por si mesmo, se se pode transformá-lo em outra figura, como fez Amásis, segundo Heródoto, com a bacia para os pés? E o que é que Nerilino, Proteu e Alexandre têm a ver com os enfermos? O que se diz que a estátua realiza agora, o fazia quando Nerilino vivia e até quando estava enfermo.

27. O que pensar, então? Primeiramente, os movimentos irracionais e fantásticos da alma sobre as aparições arrancam da matéria algumas vezes uma imagem, outras vezes outras imagens, e outras são formadas e geradas por eles mesmos. E isso padece a alma principalmente quando recebe o espírito material, com ele, e já não olha para cima, para o celeste e seu Criador, mas para baixo, para o terreno e, para fazê-lo de modo geral, quando se converte em pura carne e sangue e não em espírito limpo. Esses movimentos irracionais e fantásticos da alma geram imagens de frenética idolatria; e quando a alma, delicada e fácil de conduzir, que não ouviu nem tem experiência de sólidas doutrinas, que não contemplou a verdade nem compreendeu o Pai e Criador do universo, se imprime em si essas falsas opiniões sobre si mesma, os demônios que rondam a matéria, gulosos como são de gordura e sangue das vítimas e enganadores dos homens, apoderando-se desses movimentos de falsa opinião das almas do vulgo, fazem que fantasias se infiltrem neles, como se viessem das imagens cujos nomes usurpam, e são eles que colhem a glória do que a alma por si mesma, imortal como é, e se move racionalmente, ora para predizer o futuro, ora para curar o presente.

28. Talvez seja necessário, conforme anteriormente indicado, dizer algo também sobre os nomes. Heródoto e Alexandre, filho de Filipe, na carta à sua mãe-diz-se que tanto um como o outro conversaram com os sacerdotes em Heliópolis, Mênfis e Tebas -dizem ter sabido deles que seus deuses foram homens. Heródoto diz: "Tais demonstraram que eram aqueles que as estátuas representavam, mas muito diferentes dos deuses; antes desses homens, os deuses mandaram no Egito, vivendo junto aos humanos, e era sempre um deles que retinha o poder, e o último rei foi Horo, filho de Osíris, a quem os gregos chamam de Apolo. Este, tendo destronado Tifão, foi o último que reinou no Egito. Osíris, em grego, é Dioniso".

Assim, portanto, tanto os outros como o último, foram reis do Egito, e os nomes dos deuses vieram dos egípcios para os gregos. Apolo é filho de Dioniso e de Ísis. O próprio Heródoto diz: "Dizem que Apolo e Ártemis são filhos de Ísis e que Leto foi sua nutriz e salvadora". Daí se vê que os primeiros reis, de origem celeste como eram, seja por ignorância da verdadeira piedade para com a divindade, seja por gratidão para com o seu poder, foram tidos, como deuses junto com suas mulheres. "Agora todos os egípcios sacrificam bois puros, assim como os bezerros; as vacas, porém, não lhes é lícito sacrificá-las, mas estão sacrificadas a Isis. Com efeito, a estátua de Ísis, que representa numa mulher, tem chifres, da maneira como os gregos pintam Io". E o que se poderia crer melhor ao dizer isso, senão naqueles que por sucessão de família, o filho do pai, herdam o sacerdócio e juntamente a história? De fato, não é verossímil que os guardiães dos templos mintam, que tenham interesse em exaltar seus ídolos, ao apresentá-los como homens.

Se Heródoto disse que os egípcios falam de seus deuses como de homens, quando o próprio Heródoto diz: "Não estou disposto a divulgar os relatos divinos que escutei", não há a mais leve razão para não crer nele, como se fosse um inventor de mitos. Mas como Alexandre e Hermes, o chamado Trismegisto, e tantos outros mais, não fazendo a enumeração de todos, que uniram suas próprias famílias com os deuses, já não há razão para não pensar que, sendo homens, foram tidos como deuses. Que eles foram homens, o manifestam os mais eruditos entre os egípcios, os quais, ao chamar de deuses o éter, a terra, o sol e a lua, consideram os demais como homens mortais e os templos como seus sepulcros; isso manifesta também Apolodoro em seu tratado sobre os deuses. Além disso, Heródoto chama de mistérios os sofrimentos deles: "Já narrei anteriormente como celebram a festa em honra de Ísis na cidade de Busíris. Todos, homens e mulheres, se golpeiam depois do sacrifício, e a fé que milhares de pessoas ali depositam. Todavia, não é piedoso que eu lhes diga a maneira como se golpeiam". Se são deuses, são imortais; mas se se golpeiam e seus sofrimentos são mistérios, são homens. O próprio Heródoto diz: "Em Sais, no templo de Atenas, por detrás e seguindo ao longo da parede, está o sepulcro do deus, cujo nome não considero piedoso pronunciar na presente ocasião. Ali há também, junto ao sepulcro, um lago com bordas de pedra, bem trabalhado e circular, ao que me parece com a mesma extensão do que em Delos se chama Trocóides. Nesse lago, durante a noite, fazem-se as representações de seus sofrimentos, que os egípcios chamam de mistérios". Não só se expõe o sepulcro de Osíris, mas também a sua múmia: "Quando se lhes leva um cadáver, mostramse aos portadores modelos de mortos em madeira, imitados pela pintura; e dizem que a mais exata delas é a do deus, cujo nome não considero piedoso pronunciar na presente ocasião.

29. Também os sábios gregos, poetas e historiadores, contam a respeito de Héracles: "Cruel! Não respeitou a ira dos deuses, nem a mesa que lhe pusera, e depois matou seu próprio hóspede", isto é, Ifito. Sendo assim, é natural que fosse louco, natural que acendesse uma fogueira e se queimasse vivo. De Asclépio, Hesíodo conta que: "o pai dos homens e dos deuses se irritou, e acertando-o do Olimpo com raio fuliginoso, matou Letoida, perturbando o coração de Tebo". E Píndaro diz: "Mas até a sabedoria é atada pelo lucro. Também ele foi desviado pelo ouro que apareceu em sua mão por doce recompensa; mas o filho de Cronos, disparando com suas mãos, arrebatou-lhe velozmente o alento do peito, e o ardente raio feriu o insensato".

Portanto, ou eram deuses e não se comportavam como homens em relação ao ouro: "Ouro, o mais belo presente para mortais, prazer que nem uma mãe ou os filhos ofereceu". A divindade não tem necessidade, e está acima do desejo. Também não morreram. Ou, sendo homens, foram maus por ignorância e se deixaram dominar pelo dinheiro. Para que falar amplamente, recordando Cástor e Pólux ou Anfiaseu, os quais, sendo, como se diz, homens de ontem ou ante-ontem, são considerados deuses? A própria Ino, depois de sua loucura e o que nela sofreu, dizem que se transfomou em deusa: "aqueles que caminham errantes pelo Ponto, a chamam Leucotéia", assim como seu filho: "será chamado augusto Palêmon pelos marinheiros".

II PARTE: REFUTAÇÃO DAS ACUSAÇÕES DE IMORALIDADE, INCESTO E REFEIÇÕES BACANAIS

30. Ora, se pessoas tão abomináveis e odiosas a Deus alcançaram a reputação de ser deuses, e Semíramis, a filha de Derceto, mulher despudorada e criminosa, foi considerada deusa síria, e os sírios, através de Derceto, cultuam os peixes, e através de Semíramis as pombas - é impossível que uma mulher se transforme em pomba; a fábula aparece em Clésias-, o que há de estranho que aqueles que exerceram poder e tirania fossem chamados deuses por seus súditos? A Sibila (Platão também recor da) diz: "Virá então a décima geração de míseros homens, desde que o dilúvio caiu sobre os primeiros mortais, e reinaram Cronos, Titã e Iapeto, filhos poderosos da terra e do céu, que os homens chamaram de Gaia e Urano, dando-lhes nome por terem sido os primeiros entre os míseros homens"; uns por sua força, como Héracles e Perseu; outros por sua arte, como Asclépio.

Portanto, a uns foram os súditos que tributaram honra divina, a outros foram os governantes; uns por medo e outros por respeito tiveram parte no nome divino (o próprio Antínoco, por benevolência de nossos antepassados para com seus súditos, teve a sorte de ser considerado deus). Depois a posteridade os aceitou sem qualquer prova ou exame: "Cretenses sempre mentirosos. Com efeito, ó rei, os cretenses fabricaram o teu sepulcro. Tu, porém, não morreste".

Calímaco, tu que crês no nascimento de Zeus recusas crer em sua sepultura, e pensando jogar uma sombra sobre a verdade, não fazes senão anunciar um morto mesmo àqueles que não o conhecem. Se olhas a gruta, te lembras do parto de Rea; mas se te fixas no ataúde, lanças uma sombra sobre o morto e já não sabes que só o Deus incriado é eterno.

Concluindo, ou os mitos do vulgo e dos poetas sobre os deuses são indignos de fé, e então é supérfluo o culto que se lhes tributa, porque não existem aquelas personagens sobre as quais essas fábulas tratam; ou se são verdadeiros seus nascimentos, amores, assassínios, roubos, mutilações e fulminações, também não existem, pois deixaram de existir, uma vez que nasceram por não existirem antes. Com efeito, que razão há para crer em alguns relatos e não crer em outros, quando tudo foi contado pelos poetas, com a finalidade de glorificá-los? De fato, os que foram causa de que fossem considerados deuses ao exaltar suas histórias, não mentiriam contando os seus sofrimentos.

Fica portanto demonstrado, segundo minhas forças, embora não conforme a dignidade do assunto, que não somos ateus ao admitir como o Deus, Criador de todo este universo, e o Verbo que dele procede.

31. Além disso, acusam-nos sobre comidas e uniões ímpias, pretendendo com isso encontrar alguma razão para nos odiar. Pensam que, amedrontando-nos, nos afastarão do nosso propósito de vida; ou, com suas acusações exorbitantes, nos exasperarão e arrumarão intrigas com os governantes. Isso para nós é puro jogo, pois sabemos que esse costume é antigo e não inventado só para o nosso caso e que se realiza por uma espécie e razão divina, isto é, que a maldade faça sempre guerra à virtude. Assim, Pitágoras foi queimado pelo fogo com trezentos companheiros; Heráclito e Demócrito foram exilados, um de Efeso e o outro de Abdera, acusados de loucura; os atenienses condenaram Sócrates à morte. Mas se todos esses não perderam a reputação de virtude por causa da opinião do vulgo, a estúpida calúnia de alguns contra nós não faz nenhuma sombra à retidão de nossa vida, pois temos boa fama diante de Deus. Entretanto, quero também enfrentar essas acusações.

Sei que com o que eu disse estou defendido diante de vós. De fato, superando a todos por vossa inteligência, sabeis que aqueles que tomam a Deus como regra de vida, para que cada um de nós esteja sem culpa e sem mancha em sua presença, não podem ter, em pensamento, o mais leve pecado, e acreditássemos que nada existe além desta vida presente, poder-se-ia suspeitar que pecássemos, submetendo-nos à servidão da carne e do sangue ou sendo dominados pelo lucro e pelo desejo. Sabendo, porém, como sabemos, que Deus vigia nossos pensamentos e nossas palavras, tanto de dia como de noite, e que ele é todo luz e vê até dentro do nosso coração; acreditando, como cremos, que, ao sair desta vida, viveremos outra melhor, contando que permaneçamos com Deus e por Deus inquebrantáveis e superiores às paixões, com alma não carnal, mas com espírito celeste, embora na carne; ou acreditando que, se cairmos como os demais, espera-nos uma vida pior no fogo (porque Deus não nos criou como rebanhos ou bestas de carga, de passagem, só para morrer e desaparecer); crendo nisso, dizíamos, não é lógico que nos entreguemos voluntariamente ao mal e nos joguemos a nós mesmos nas mãos do grande juiz para sermos castigados.

32. Não há nada de surpreendente que falem de nós a mesma coisa que contam sobre seus deuses, pois apresentam suas paixões como mistérios. Contudo, se querem apresentar como crime o unir-se livre e indiferentemente, teriam de começar a rejeitar Zeus, que teve filhos com sua mãe Rea e com sua filha Coré e cuja mulher é a própria irmã, ou rejeitar Orfeu, o inventor de todos esses contos, que tornou Zeus mais ímpio e abominável do que Tiestes; com efeito, este se uniu com a própria filha através de um oráculo e pelo desejo de chegar a reinar e vingar-se. Nós, porém, estamos tão longe de ver isso com indiferença que não nos é lícito sequer olhar com intenção de desejo. De fato, a Escritura diz: "Aquele que olha para uma mulher a fim de desejá-la já cometeu adultério em seu coração". Como não acreditar que são castos os que nada podem olhar além daquilo para o qual Deus formou os olhos, isto é, para que fossem nossa luz, aqueles que consideram adultério o olhar com prazer, pois os olhos foram criados para outra finalidade, e os que serão julgados até pelos seus pensamentos? Nós nada temos a ver com leis humanas, que qualquer malvado pode burlar (desde o começo, ó soberano, vos assegurei que nossa doutrina era ensinamento de Deus), mas temos uma lei e mandamento, que nos deu a nós mesmos e ao nosso próximo como medida de justiça. Por isso, dependendo da idade, consideramos a uns como filhos e filhas, a outros como irmãos e irmãs, e aos mais velhos tributamos honra de pais e mães. Assim, empenhamo-nos para que aqueles aos quais damos nome de irmãos e irmãs e outras qualificações familiares, permaneçam sem ultraje ou corrupção em seus corpos, como nos diz também a palavra divina: "Se alguém, por ter gostado, dá um segundo beijo..." Portanto, é preciso ser muito exato a respeito do beijo e principalmente na adoração, porque por pouco que manchem nossa mente nos colocam fora da vida eterna.

Indissolubilidade do matrimônio

33. Como temos esperança na vida eterna, desprezamos as coisas da vida presente e até os prazeres da alma, tendo cada um de nós por mulher aquela que tomou conforme as leis estabelecidas por nós e com a finalidade de procriar filhos3. Assim como o lavrador, jogada a semente na terra, espera a colheita e não continua semeando, do mesmo modo, para nós, a medida do desejo é a procriação de fïlhos . E até é fácil encontrar muitos dentre nós, homens e mulheres, que chegaram celibatários à velhice, com a esperança de um relacionamento mais íntimo com Deus. Se o viver na virgindade e castração aproxima mais de Deus e só o pensamento e o desejo separa, se fugimos dos pensamentos, quanto mais não recusaremos as obras? Nossa religião não se mede pelos discursos cuidadosos, mas pela demonstração e ensinamento de obras: ou se permanece como nasceu, ou não se contrai mais do que um matrimônio, pois o segundo é um adultério decente. A Escritura diz: "Quem deixa sua mulher e casa com outra, comete adultério", não permitindo deixar aquela cuja virgindade desfez, nem casar-se novamente. Quem se separa de sua primeira mulher, mesmo quando morreu, é adúltero dissimulado, transgredindo a mão de Deus, pois no princípio Deus formou um só homem e uma só mulher, desfazendo a comunidade da carne com a carne, segundo a unidade para a união dos sexos.

34. Nós que somos assim (por que devo falar o que não pode ser dito?), temos que ouvir o provérbio: "A prostituta para a casta". Com efeito, os que fazem mercado de prostituição e constroem para os jovens prostíbulos para todo prazer vergonhoso; os que não perdoam nem aos homens, cometendo atos torpes homens com homens; os que ultrajam de mil modos os corpos mais respeitáveis e mais formosos, desonrando a beleza feita por Deus (pois a beleza não nasce espantaneamente da terra, mas é enviada pela mão e desígnio de Deus); esses nos atiram na cara aquilo de que têm consciência, o que eles chamam de deuses, adúlteros e pederastas insultando aos virgens e monógamos. Eles que vivem como peixes (pois devoram quem lhes cai na boca, o mais forte atacando o mais fraco - isso sim é alimentar-se de carnes humanas - e que, tendo leis estabelecidas por vossos antecessores após maduro exame para toda a justiça, violentam-se os homens contra elas, de modo que não são suficientes os governadores mandados por vós para os julgamentos); esses, dizíamos, acusam os que não podem deixar de se apresentar aos que os golpeiam nem de abençoar os que os amaldiçoam. Para nós não basta ser justos - a justiça consiste em dar o mesmo aos iguais - mas nos é proposto que sejamos bons e pacientes.

III PARTE: OS CRISTÃOS NÃO SÃO ANTROPÓFAGOS

35. Quem, em plena razão, poderia dizer que, sendo assim, somos assassinos? Não é possível saciar-se de carne humana, se antes não matamos alguém. Se eles mentem quanto ao primeiro ponto, mentem também quanto ao segundo. Com efeito, se lhes é perguntado se viram o que dizem, não existe ninguém tão sem-vergonha que diga ter visto. Entretanto, temos escravos, alguns mais outros menos, para os quais não é possível ocultarnos. No entanto, nenhum deles chegou a caluniar-nos com semelhantes coisas. De fato, os que sabem que não suportamos ver uma execução com justiça, como vão nos acusar de matar e comer homens? Quem de vós não se entusiasma em ver os espetáculos de gladiadores ou de feras, principalmente os que são organizados por vós? Nós, porém, que consideramos que ver matar está próximo do próprio matar, nos abstemos de tais espetáculos. Portanto, como podemos matar os que não queremos sequer ver para não contrair mancha ou impureza em nós? Afirmamos que as mulheres que tentam o aborto cometem homicídio e terão que dar contas a Deus por ele 4; então, por que iríamos matar alguém? Não se pode pensar que aquele que a mulher leva no ventre é um ser vivente e objeto, conseqüentemente, da providência de Deus e em seguida matar aquele que já tem anos de vida; não expor o nascido, crendo que expor os filhos equivale a matá-los, e tirar a vida ao que já foi criado. Não! Nós somos em tudo e sempre iguais e concordes com nós mesmos, pois servimos à razão e não a violentamos.

" Princípio de moral e de não-violência ao ser indefeso de extrema atualidade. Atitude corajosa concepção avançada da natureza do feto como ser vivo, objeto dos cuidados de Deus, quando o direito romano da época não o considerava como ser vivo e não se lhe reconhecia direito de existência.

36. Além disso, quem crê na ressurreição quererá oferecer-se como sepultura dos corpos que hão de ressuscitar? Não é possível alguém acreditar que nossos corpos ressuscitarão e, ao mesmo tempo, os coma, como se não devessem ressuscitar; pensar que a terra devolverá seus próprios mortos e, ao mesmo tempo, pensar que aqueles que engoliu não reclamarão. É mais verossímil o contrário, aqueles que pensam que não se terá de dar conta desta vida, tanto faz se é boa ou má, e que não haverá ressurreição, mas que julgam que com o corpo perece também a alma e esta como que se apaga; é natural, dizíamos, que esses não se abstenham de nenhum atrevimento, crêem que nada ficará sem ser examinado diante de Deus e que juntamente com a alma será castigado o corpo que cooperou com seus impulsos e desejos irracionais, quanto a esses não há razão para que cometam o mais leve pecado. Se para alguém parece pura charlatanice que um corpo apodrecido, desfeito e desaparecido torne a organizar-se, não poderia por parte daqueles que não crêem na ressurreição imputar-nos maldade, mas ingenuidade. De fato, se nos enganamos a nós mesmos com essas razões, não causamos prejuízo a ninguém. Entretanto, não somos apenas nós que admitimos a ressurreição dos corpos, mas muitos filósofos também estão conosco. Contudo, seria ocioso demonstrar-vos isso agora, a não ser que introduzíssemos raciocínios estranhos ao nosso objetivo, falando do inteligível, do sensível, da constituição de um e de outro, que o incorporal é anterior aos corpos, que inteligível precede o sensível, embora não seja isso o que primeiro encontramos, pois os corpos são constituídos de elementos incorpóreos, conforme a acumulação do inteligível, e o sensível é constituído de elementos inteligíveis. Segundo a doutrina de Pitágoras e de Platão, nada impede que, realizada a dissolução dos corpos, voltem depois a organizar-se com os mesmos elementos dos quais eram constituídos no princípio.

37. Reservemos, porém, para outra ocasião o discurso sobre a ressurreição. Quanto a vós que, em tudo e por tudo, por natureza e educação, sois bons, moderados, humanos e dignos do império, inclinai vossa imperial cabeça diante de quem desfez todas as acusações e demonstrou que somos piedosos, modestos e puros em nossas almas. Quais são os que merecem, com mais justiça, conseguir o que pedem senão nós que rogamos por vosso império, para que o herdeis, como é de estrita justiça, de pai para filho, que cresça e acresça, através da submissão de todos os homens? Isso também redunda em proveito nosso, para que, levando uma vida tranqüila e pacífica, cumpramos animadamente tudo quanto nos é mandado.

3Explicação de um princípio de "moral matrimonial" que vai fazer muita história e mantido até hoje por parte da Igreja oficial: fim primeiro e último do matrimônio é a procriação; todo ato conjugal, toda união sexual que não esteja em função da procriação é pecaminosa.